“Agarrei-a com os dois braços, caímos juntos no chão. O fogo, à nossa frente, crescia como um monstro que tudo consumia. A terra, a madeira, os bichos e os homens. Pus-me de joelhos e abracei-a; Cecilia enterrou o rosto no meu ombro. O calor envolvia-nos, as fagulhas entravam-nos na pele e nos olhos. Levantei o rosto para o céu e vi as nuvens que, agora, ocultavam as estrelas, as tuas nuvens, A., os cães que corriam na direção de uma escarpa, os rostos, a estrada, e perguntei a Cecilia, cujo corpo tremia nos meus braços, porque é que ela corria, e ela respondeu que corria porque Deus não tinha respondido às suas preces. E que preces eram essas. Eu rezei para que ele me levasse, respondeu, para que me levasse em vez do meu pai. És louca, Cecilia, disse eu, e abracei-a com mais força, cheirou-me a cabelo chamuscado. És louca, tu não podes ir, não é a vontade d’Ele, fazes falta. Faço falta a quem, perguntou ela, e começou a esmurrar, com os seus pequenos punhos, as minhas costas. Faço falta a quem, repetiu. Fazes-me falta, disse eu. Não me mintas, disse Cecilia, e tornou a esmurrar-me as costas, como se eu mentisse, e ouvi-a fungar, e esfregou o rosto na minha barba, molhando-a, e eu repeti. Não te minto, Cecilia, não te minto. A fogueira continuava a crepitar. Cecilia continuava a esmurrar-me as costas. Eu continuava a abraçá-la, mas afrouxei um pouco o abraço, não muito, apenas o suficiente para não a sufocar, e fechei os olhos, soltando-a, devagar, sem pressa ou sofreguidão, até encontrar a medida certa do amor.”
(in “O Luto de Elias Gro”, Companhia das Letras)
“Escolhi este parágrafo porque O Luto de Elias Gro é sobre o desamparo ou o amor oculto. O paradoxo do amor: qualquer coisa que não se tem e que nunca deixa de estar presente. Por vezes julgo que todas as manifestações de beleza – mesmo a mais cruel – são manifestações desse amor. É como Sarah diz, a certa altura, no The End of the Affair [de Graham Green] – o livro mais bonito que eu conheço sobre o tema –, ao julgar-se indigna de amor: “Vou roubar-te, Deus, daquilo que mais amas em mim.”
João Tordo
O excerto escolhido por João Tordo é do seu livro O Luto de Elias Gro, obra que inicia uma trilogia, à qual pertencem ainda O Paraíso Segundo Lars D. e O Deslumbre de Cecilia Fluss. Neste, que é considerado um dos livros mais intimistas do autor, um homem isola-se numa ilha para esquecer. Nesta fuga de si mesmo, na qual acaba por se encontrar dentro de si próprio, explicando-se nas minudências da humanidade e nesta condição de ser gente, o luto, a dor, o lugar do passado e dos seus demónios dão corpo a personagens inusitadas, que também se contam em laivos de esperança e de empatia. Considerado na altura da sua edição, em 2015, um romance disruptivo, que revela a escrita de Tordo em novos contornos criativos, O Luto de Elias Gro lê-se num fôlego corrido, que nos leva numa viagem ao mundo dos afetos.O livro tem cerca de 320 páginas e está editado pela Companhia das Letras.
João Tordo, de 45 anos, foi galardoado com o Prémio José Saramago em 2009.
Fotos: Paulo Jorge Figueiredo