Com uma vasta obra literária, que inclui títulos como Mataram o Sidónio!, O Mensageiro do Rei, O Mistério do Caso de Campolide ou Os Cães de Salazar, e autor de argumentos para cinema e televisão como A Ferreirinha, Ballet Rose, Alves dos Reis ou O Processo dos Távora, Francisco Moita Flores, de 70 anos, preparava-se para dar uma sessão de autógrafos na Feira do Livro de Lisboa, no dia 11 de setembro de 2022, quando sofreu um enfarte agudo do miocárdio. Entrou em “morte súbita”, valendo-lhe a presença de três médicos na Praça Leya, que de imediato lhe prestaram as primeiras manobras de reanimação. E também o facto de haver desfibrilhadores na Feira. Transportado rapidamente pelo INEM para o Hospital de Santa Marta, especializado em doenças do coração, foi operado nesse mesmo dia pelo Prof. José Fragata, que lhe colocou três bypasses. Esteve uma semana em coma induzido, acordando com a filha, Matilde, de 25 anos – nascida do seu casamento de 26 anos com a atriz Filomena Gonçalves –, a fazer-lhe festas na mão. Nos primeiros tempos, o antigo detetive e investigador da Polícia Judiciária – que se tornou conhecido do grande público como comentador do programa da SIC Casos de Polícia – sofreu fortes dores, o horror de estar preso a um colete de contenção com tiras metálicas e a angústia de sentir a sua memória “esfrangalhada”. A sorte, no entanto, continuou do seu lado, e sete meses depois não só se sente fisicamente recuperado, como a sua memória voltou quase na íntegra. E nem ficou com lesões no coração.
Esta experiência traumática levou-o a escrever o livro Um Enfarte no Alto do Parque (a Feira realiza-se no Parque Eduardo VII), com o objetivo de alertar para a necessidade de um estilo de vida saudável – ele que cometeu muitos “pecados” – e também para o facto de que qualquer de nós pode aprender noções básicas de reanimação que podem ajudar a salvar vidas.
“Espero conseguir que a mensagem passe a muita gente. Sobretudo, que aprendam a viver com moderação.”
– Diz logo no início do livro: “Morri.” Sendo a probabilidade de sobreviver a um enfarte do miocárdio de apenas 5%, sente que foi alvo de um milagre?
Francisco Moita Flores – Fui alvo de um conjunto de circunstâncias excecionais, porque entre as pessoas que estavam na Praça Leya incluíam-se três médicos que estavam perto de mim, Diogo Cavaco, Joana Figueira e Joana Goulão, a comprar livros, e que me socorreram. Ao mesmo tempo, o pessoal da Leya criou as condições para a ajuda que vinha de fora, evacuando a praça, pois estavam milhares de pessoas na Feira. Por isso não foi um milagre divino, foi um milagre feito por homens.
– Então não acha que houve também um bocadinho de intervenção divina?
– Sou um homem de fé, mas não consigo atribuir à intervenção divina este acidente, porque seria um Deus castigador, e eu não acredito num Deus castigador, porque passei por toda uma experiência terrível.
“Os médicos que me salvaram fazem parte do meu panteão de deuses e de afetos. Não sei como é que se agradece a vida.”
– Passou a ter mais medo da morte ou o “vazio” que foi essa experiência de alguma forma tranquilizou-o?
– Já pensei sobre isso e se a minha morte for aquilo é uma morte muito boa, porque não senti nada, não tive sofrimento, é a morte que talvez todos desejemos. Mas não sei se ela chegará assim. Incomoda-me pensar que posso sofrer, mas não me incomoda a ideia da morte, porque tenho consciência de que a vida é assim.
– Extraordinariamente, conseguiu ficar sem lesões no coração.
– Sim, hoje estou aqui um rapaz jeitoso, bem-disposto e jovem [risos]. E sem sofrimento.
– A sua filha foi a primeira pessoa que viu depois da “ressurreição” e foi “um despertar tão belo”.
– [Emociona-se] Sei que tive várias visitas antes, mas não dei por elas. A minha mulher, família, amigos, mas não me lembro de nada. A primeira vez foi quando a minha filha me tocou e eu acordei e vi-a. E foi de facto uma grande alegria. Estava vivo!
– Diz que quando acordou se sentiu “indefeso, assustado e numa solidão profunda” e reconhece que o apoio moral do pessoal do hospital foi essencial.
– Naqueles dias, como só tinha uma visita por dia, não podia contar com a família. E foi aí que entraram em jogo os enfermeiros, o pessoal auxiliar, que foram extraordinários.
“Não podemos permitir que o coração nos mate por causa do nosso desleixo.”
– Entretanto, certamente que a Filomena e os seus filhos [é ainda pai de Nuno, de 49 anos, e Luís, de 48, do seu anterior casamento] têm sido indispensáveis no processo de recuperação.
– Sim, eles, mas também todos os familiares em geral, o pessoal da Leya, que tem sido uma família, de um apoio incansável, e até muitos anónimos. Foi fantástico sentir este conforto. É bom sentirmos que nos fazem festas na cabeça quando estamos fragilizados.
– Porque houve ainda uma enorme onda de solidariedade que se criou à sua volta. Essas manifestações de apoio também deram um novo sentido à sua vida?
– Deram. Deram-me a consciência de que não estava sozinho. De que havia milhares de pessoas que me seguem, que me acompanham, e para as quais eu tenho que trabalhar para retribuir essa atenção. E daí que não só este livro, mas todo o meu trabalho daqui para a frente, seja no sentido de os servir melhor. Tenho 70 anos, já estarei cá pouco tempo, mas será para servir aqueles que me amam [emociona-se]. Desculpe estas minhas fragilidades. Do ponto de vista físico, sinto-me bem, do ponto de vista psicológico é que ainda estou a ressacar da morte. Às vezes acordo e pergunto-me como é que é possível ainda estar aqui. Como é que é possível não ter morrido? E eu não fiz nada de especial para merecer ficar vivo!
– A vida deu-lhe uma segunda oportunidade. Considera-se “um sortudo a quem saiu o Euromilhões” e diz estar a viver “num admirável mundo novo”. É hoje mais feliz?
– Bom, eu saí de um mundo onde me sentia bem, sou um epicurista, sempre gostei de aproveitar o bom que a vida me deu, sempre saboreei a vida de uma forma muito intensa. E, de repente, esse mundo acabou. Mas veio um mundo novo, que tem as suas qualidades, porque tem mais passarinhos a cantar, tem o barulho das águas do rio, tem alfaces, e eu não conhecia muito bem o sabor delas, não era praticante dos verdes [risos]. É um mundo que tem um cheiro diferente, um sabor diferente, por ter deixado de fumar. E comecei a gozar o prazer de não fazer nada, a gostar de dormir.
– Não teve qualquer sintoma que o alertasse para o que lhe aconteceu, pelo que não havia como evitar essa “morte súbita”. E por isso mesmo diz que foi o peso da obrigação de dar conselhos ao “caro leitor” que o levou a escrever o livro. Porque quer ajudá-los a evitar os “pecados” que o levaram “àquela cama dolorosa”. Quais foram esses “pecados”?
– Tabaco em excesso, chouriço em excesso, cozido à portuguesa em excesso, trabalhar fora daquilo que são as nossas capacidades físicas, até à exaustão, sem respeitar o corpo, os períodos de descanso, o stress, a falta de mobilidade. Enfim, essa alucinação em que nós todos vivemos e que fazem do acidente cardiovascular a principal causa de morte em Portugal. E não podemos permitir que o coração nos mate por causa do nosso desleixo. Escrevi pensando naqueles que ainda não foram vítimas da traição do coração e podem evitá-lo. Não é preciso fazer muita coisa, basta ter bom senso.
– Portanto, tem hoje várias limitações, nomeadamente teve que deixar de fumar os seus 40 cigarros por dia – e diz hoje que “fumar é uma estupidez” –, não pode tocar em gorduras, acabou-se o vinho à discrição. Mas diz que tem sido uma luta entre o Pinóquio e o Grilo Falante, com o Pinóquio a tentá-lo a quebrar as novas regras da sua vida. Tem sido sempre o Grilo Falante a ganhar?
– Não, não ganha sempre, ainda estou a habituar-me a este modo de vida. Mas está a dar-me prazer, até porque sou disciplinado. Ao princípio estranhava, mas já passaram sete meses e agora tenho uma predisposição para procurar coisas que me sabem bem e que antes não me sabiam, a que não dava prioridade. Na alimentação, no descanso, percebi que dormir é bom. Eu dormia 4/5 horas, e sempre em turbulência, hoje chego às 11 da noite e começa uma outra vida, que é a vida do descanso. Agora estou reformado.
– A sua família deve agradecer isso.
– Eu julgo que cada um de nós aprendeu algo com isto. Na disciplina de cada um.
– Mas continua a escrever?
– Sim, isso só deixarei quando morrer. Estou a escrever um romance, aliás, já estava a escrever esse livro quando tive o enfarte, e estou agora a recomeçar.
– Enfarte no Alto do Parque é, sem dúvida, o livro mais pessoal que escreveu.
– Este não tem personagens, este tem pessoas, não há a criação de um mundo literário. E espero conseguir que a mensagem passe a muita gente. Sobretudo, que aprendam a viver com moderação e, por outro lado, que aprendam a salvar outras pessoas, porque é possível. Aliás, o meu enfarte já teve um ponto positivo: a APEL, que organiza a Feira do Livro, vai proporcionar cursos de reanimação aos funcionários da Feira. Isto é simples, não é preciso ser médico nem enfermeiro, qualquer pessoa pode aprender a fazer reanimação. São técnicas acessíveis a qualquer cidadão. E essas formações deviam ser estendidas às escolas, às grandes superfícies, às grandes instituições públicas. Para que morresse menos gente.
– Fala dos médicos que o salvaram como se fossem os seus “Anjos da Guarda”. Mantém o contacto com eles?
– Mantenho, com um sentido de gratidão imenso. Não consigo retribuir aquilo que aquele homem e aquelas duas mulheres fizeram por mim. Às vezes penso: “Como é que eu agradeço a esta gente?” Não sei como é que se agradece a vida. A amizade acho que não chega. Mas eles dizem que estão satisfeitíssimos, porque salvaram uma vida. E eu dou o meu contributo amando-os profundamente. Fazem parte do meu panteão de deuses e de afetos.
– Tem também vários parágrafos dedicados ao pessoal de enfermagem e aos auxiliares, que considera verdadeiros heróis pelo seu “desvelo, delicadeza, eficiência, paciência”. E lamenta a “falta de reconhecimento e dignidade” de que são vítimas.
– Eu não conheço nada dos problemas de saúde do país a não ser pelas notícias, mas aquilo que testemunhei no Hospital de Santa Marta, e estava numa unidade que é complicadíssima do ponto de vista da exigência, foi gente com uma dedicação, com um aprumo fora de série. E pensava: “Como é que eles, que trabalham desdobradamente, com uma azáfama e um frenesim extraordinários, conseguem ser de uma competência que vai acima do que algum ser humano pode imaginar? E como é que é possível que estas pessoas tenham que ir para a rua protestar porque ganham 800 ou 900 euros?!” Ali salvam-se vidas todos os dias! Para mim tornou-se uma missão intervir na prevenção do enfarte e na defesa dos profissionais de saúde.