Anabela Moreira tem uma certa aura enigmática que transmite paz interior e não deixa dúvidas de que é uma apaixonada pelo seu trabalho. Foi em miúda que decidiu que ser atriz faria parte do seu percurso. O clique deu-se quando viu um filme de Charlie Chaplin no Cinema Turim, onde o pai trabalhava. Aos 47 anos, tem uma carreira irrepreensível e premiada, da qual, naturalmente, se orgulha.
O mediatismo que decorre do sucesso do seu trabalho é algo que não alimenta e tenta não se expor demasiado para não sofrer. “Não acho interessante expor-me, porque depois já não se olha para uma personagem e sim para a pessoa que a interpreta. Sempre tentei manter a incógnita sobre mim. Tenho muito medo disso. É assim que tento salvaguardar o meu trabalho”, justifica a atriz, que estreou recentemente o seu mais recente trabalho no cinema, Nação Valente, de Carlos Conceição, além de integrar o elenco da novela da SIC Sangue Oculto.
– O filme “Nação Valente” tirou-a da sua zona de conforto?
Anabela Moreira – Trabalhar com o Carlos Conceição é sempre um bom desafio. Já perdi a conta ao número de projetos em que trabalhei com ele. É um artista único e este filme tem uma maturidade e um nível incomparáveis. É, talvez, um dos melhores filmes portugueses de sempre. Para mim, é um filme perfeito, tendo em conta que não costumo considerar filmes perfeitos, principalmente aqueles em que entro.
“Gosto mais de mim, sinto-me mais confortável para me questionar em relação à profissão e à minha própria vida.”
– É muito crítica em relação ao seu trabalho?
– Sim, como qualquer pessoa deveria ser, com conta, peso e medida, no sentido em que é bom para crescer e tornar o trabalho melhor. Não sou a mesma atriz que era quando comecei, nem sempre foi um trabalho feito de forma contínua. Há erros e coisas menos boas, mas é um processo interno que é tão importante como a vida. Ser atriz e viver a vida como Anabela são coisas muito comparáveis, andam lado a lado, os processos dos filmes por vezes comparam-se com histórias que estou a atravessar na minha vida.
– Consegue separar bem essas duas facetas?
– Sim, e é essa a parte interessante. Há um certo mito sobre o que é o trabalho do ator. Chego a casa e sou sempre a Anabela, mesmo quando estou a representar. Nunca me confundi. Existem portas que abrimos em nós para tornar compreensíveis determinadas facetas. O ser humano é muita coisa e há comportamentos e características da minha pessoa que nunca precisei de exercitar, nunca me debrucei sobre elas. E cada personagem dá-me essa oportunidade, algo que o ser humano comum não tem de fazer, como, por exemplo, refletir sobre o que um psicopata está a pensar. É um exemplo extremista. Acredito que as personagens devem ser interpretadas através da nossa interioridade, mas não existem métodos. Os artistas são todos diferentes, e ainda bem que é assim. Cada um deve interpretar à sua maneira e isso é que é bonito. Consegui encontrar no meu percurso como atriz alguns realizadores que me permitiram viagens mais profundas, como o João Canijo.
– Questiona-se muito?
– Constantemente. Acredito que todos os atores fazem isso, de uma maneira ou de outra. Não é fácil ser-se ator, o desafio é mesmo esse. Todos os atores precisam de colocar a sua necessidade de criação num sítio qualquer. Tenho sítios onde a colocar, no espaço e no tempo, e mesmo quando não tinha arranjei forma de o fazer. É como se estivesse sempre a criar, através das artes. No fundo, é viver de forma ampliada.
– Que magia é que a representação traz à sua vida?
– Para mim, fazer o que faço e viver disso é motivo de orgulho. Olho e penso que consegui fazer isto sem fugir muito ao que queria, sem conceder em muita coisa, considerando-me digna para me chamarem para interpretar uma personagem, merecer o respeito de poder discutir uma personagem. Isso traz-me uma inquietude e responsabilidade maiores. É um processo um tanto solitário que não tem nada de mágico.
“Há características da minha pessoa que nunca precisei de exercitar. (…) Cada personagem dá-me essa oportunidade.”
– Os prémios são apenas um reconhecimento do seu trabalho ou trabalha para eles?
– Às vezes são embaraçosos. Não é nenhuma coisa cabal, não dizem nada de ti enquanto ator ou atriz de forma precisa. Quando alguém o faz, claro que nos sentimos bem com o reconhecimento, mas, ao mesmo tempo, é como se fosse uma espécie de falsa modéstia. Ganhar um prémio é a conjugação de muitos fatores, nunca é só nosso, também é das pessoas que o atribuíram. A partir daí, o valor passa a ser relativo, sendo que nunca trabalhei para nenhum deles. Dá uma felicidade momentânea, mas no segundo a seguir estou igualmente insegura. Não me torna mais capaz nem segura.
– Por outro lado, traz responsabilidade…
– Talvez… mas é um peso que eu não desejo ter sobre mim. Fui melhor atriz naquele trabalho, mas não quer dizer que seja noutro. Tenho de estar livre disso. A liberdade é poder decidir se quero estragar uma cena, e se calhar estragar uma cena é torná-la ainda melhor. E o pior que pode acontecer a um ator é ter medo e não arriscar numa cena, com prejuízo desse estatuto. Nós, atores, fazemos parte de algo que não controlamos. Construímos algo que é orgânico e não comandamos absolutamente nada.
– Aos 47 anos, pára para pensar no que ainda está para vir?
– Tenho a sorte de estar a fazer o que gosto. Sinto-me abençoada porque cada vez mais tenho personagens interessantes e surpreendentes, algo que se calhar não conseguia quando era mais nova. Não sei o que virá por aí, a vida pode ser tanta coisa extraordinária que eu dou por mim sem pensar muito nisso. A verdade é que estou cada vez mais consciente de quem sou sem tanta censura, a divertir-me mais com as minhas personagens. Na vida, é preciso coragem para fazer as perguntas certas sobre os nossos comportamentos e quando encaramos as personagens também é preciso coragem para fazer as perguntas certas. Uma coisa anda a par da outra. É uma dinâmica e construção diárias que faço. Agora estou mais preparada e é por isso que gosto mais de mim, sinto-me mais confortável para me questionar em relação à profissão e à minha própria vida. Divirto-me cada vez mais e estou mais desligada dos resultados e apaixonada pelos processos. Estou focada no presente, que é cada vez mais um instrumento essencial para aquilo que decidi fazer, ser atriz. Estou a trabalhar há quatro anos sem parar, tenho tido essa sorte e tenho consciência disso. A vida passa tão depressa que o melhor é mesmo relativizar e viver da melhor forma possível.
“Neste momento não tenho certezas de nada, mas tenho a capacidade de me questionar.”
– O seu pai morreu recentemente. Este tipo de perdas fazem-na questionar o que está à sua frente?
– [Faz uma longa pausa] A vida é um mistério e há uns tempos estaria mais segura em dar respostas sobre o que esta seria ou não. O mundo mudou e ganhou outra forma para mim depois deste acontecimento e ainda estou a tentar redescobrir onde estão os comandos da vida. É como se até aqui me conseguisse orientar e de um momento para o outro me tivessem trocado as voltas, mudou a perspetiva das coisas. Neste momento não tenho certezas de nada, mas tenho a capacidade de me questionar.
Agradecemos a colaboração de Lisboa Pessoa Hotel