Há pais que querem ser perfeitos. E esperam que os filhos ajam de forma irrepreensível, que tenham sucesso, que sejam líderes, que alcancem o mérito e a excelência. Pais para quem o desempenho académico é primordial, em detrimento das capacidades emocionais. Uma visão que para Pedro Strecht é completamente distorcida e que o levou a pegar no conceito de “suficientemente bom”, do pedopsiquiatra britânico Donald Winnicott, como ponto de partida para escrever Pais Suficientemente Bons – para filhos que não têm de ser perfeitos.
Este é um livro que ajuda a desconstruir todas as projeções que o médico de psiquiatria da infância e adolescência considera terem consequências imensuráveis nas crianças e jovens, que acabam a desenvolver, a seu ver de forma errada, o conceito de infalibilidade, a sentir uma tensão desnecessária, um sentimento de insegurança, de culpa, de fracasso, um aumento exponencial de ansiedade, que os atira por vezes para as depressões e, consequentemente, para o consumo de psicofármacos. Para o pedopsiquiatra, de 57 anos, é assustador perceber que os pais têm dificuldade em reconhecer os pontos fracos, assumir que também falham, quando, sublinha, é nas falhas, nas frustrações, nos momentos de tristeza, de contrariedade, de dificuldade, que se valorizam os outros, que se reforça a própria ideia de felicidade.
Pai de uma rapariga, de 15 anos, e de dois rapazes, de 18 e 20, o médico depara-se com muitos desafios. E não só não anseia ser um pai perfeito, como também não exige a perfeição aos filhos. Prefere dar-lhes ferramentas, prepará-los para as adversidades e deixá-los trilhar o seu caminho com todas as falhas que possam surgir, para que saibam enfrentar as frustrações, para que conheçam os seus limites.
“Os adultos protegem demasiado os filhos perante situações que são às vezes simples e banais.”
– Estarão as crianças e jovens hoje demasiado protegidos para lidar com a derrota e a frustração? Não é nas derrotas, na frustração e momentos de tristeza que se reconhecem os de alegrias e vitórias?
Pedro Strecht – Esse é mesmo um dos pontos fundamentais do livro, a ideia de que os adultos protegem demasiado os filhos perante situações que são às vezes simples e banais. Situações de contrariedade, de falta, de falha, ou até de ausência deles próprios enquanto pais. Há uma expectativa para os mais novos de que é suposto tudo acontecer sempre de determinada maneira, e depois, no confronto com a realidade do dia a dia, muitas crianças e adolescentes acabam por ter imensa dificuldade em lidar com coisas que são muito pequeninas em termos de dificuldades ou frustrações, mas que se transformam em obstáculos enormes. Se nunca estivermos tristes, não sabemos o que é a alegria ou não temos um manejo natural dos nossos afetos, das nossas emoções.
– Serão os pais hoje em dia demasiado permissivos?
– Sim, também. Apesar de tudo, há uma maior fusão de gerações, e há muitos pais que acabam por ter uma atitude por vezes demasiado permissiva, mas só em relação a algumas áreas, porque noutras acabam por ter uma expectativa muito alta, nomeadamente em relação ao desempenho académico, aos quadros de honra e diplomas de mérito.
– Não permitir que falhem resulta num sentimento de ansiedade?
– Sim. A ideia do ser perfeito traz uma enorme ansiedade de antecipação. Vou dar um exemplo muito simples: há jovens que quando iniciam o ensino secundário já estão a pensar nas notas que vão ter no fim do ciclo, nos exames do 12.º ano, o que lhes cria uma ansiedade de antecipação muito grande e depois uma ansiedade de desempenho. Gera também uma sensação de insatisfação, de querer sempre mais, o que pode, em alguns casos, levar às depressões.
– Como diz no livro, é preciso deixar margem para o erro…
– Há duas ou três coisas que destaco quando, em consulta, vejo pais que têm dificuldade em tolerar uma pequena margem de erro nos filhos: ajudo-os sempre a repensar como é que foi a sua própria infância e adolescência, peço-lhes para se porem na pele dos filhos. Depois, quando os pais só enfatizam a parte da falha, também os ajudo a tentar perceber o oposto, ou seja, tento que valorizem as competências dos filhos noutras áreas, sejam artísticas, desportivas ou até sociais. Por último, peço aos pais que reconheçam e assumam as suas próprias falhas sem acharem que estão a perder autoridade em relação aos filhos.
“Há entre os jovens um aumento de situações de perturbações de ansiedade e de alterações do humor na linha depressiva.”
– Que sequelas é que tamanha exigência lhes poderá deixar?
– Infelizmente, as consequências estão muito à vista, porque, olhando para dados muito recentes, temos não só um aumento muito grande de situações de perturbações de ansiedade e de alterações do humor na linha depressiva, como temos um consumo brutal, dentro da União Europeia, de psicofármacos por parte dos mais novos, nomeadamente ansiolíticos e antidepressivos, que não só reforçam a ideia de que, infelizmente, estas situações são cada vez mais frequentes, como também outra ideia que acho importante salientar, porque me parece negativa, que é fazer-se uso quase que exclusivo de medicação e não se fazer uma abordagem terapêutica para que se perceba a origem dos problemas.
– A revista Sábado fez recentemente capa de um artigo que dizia que cerca de 20% dos adolescentes sofre de ansiedade e depressão e só uma minoria é acompanhada. Porque os pais não querem assumir a fragilidade dos filhos, por falta de condições económicas…
– Pode ser por ambas as coisas e juntando-se uma outra, que é a dificuldade prática de resposta, nomeadamente ao nível de serviços do SNS, onde o tempo de espera para uma consulta, há bem pouco tempo, por exemplo na área de Lisboa, passava dos seis meses. Meio ano é imenso na vida de uma criança e de um adolescente. Em seis meses pode acontecer tanta coisa… E mesmo quando aparece a resposta, há ainda uma fragilidade em relação ao número de profissionais, incluindo psicólogos, que seria preciso para dar continuidade à resposta. As intervenções terapêuticas nesta área não são mágicas, não bastam uma ou duas consultas. Muitas das vezes é preciso dar acompanhamento, fazer intervenções multidisciplinares nas crianças, na família. E é aqui que infelizmente aparecem os psicofármacos como uma resposta momentânea. E não estou a dizer que em algumas circunstâncias não sejam úteis, no sentido de diminuir a intensidade ou gravidade de alguns sintomas, mas, como digo sempre, não são os fármacos que resolvem. Podem resolver momentaneamente o sofrimento, minimizá-lo, mas a resolução verdadeira das questões está muito para além disso. Estão longe de resolver a raiz dos problemas mais profundos que lhes dão origem.
– Numa passagem do livro pode ler-se: “Ter tempo livre, descansar, fazer coisas sem um propósito determinado é visto como socialmente criticável e entendido como displicência ou desinteresse.” Isso angustia esses tais pais que não admitem falhas?
– Acho mesmo que um filho estar sem fazer nada angustia imenso esses pais, assusta-os. Mas com a quantidade de atividades, a sobrecarga de horário escolar, esse tempo para estar quieto é um tempo de digestão e integração das próprias experiências. Do ponto de vista emocional, é preciso haver tempo para desligar, para não fazer nada. No não fazer nada às vezes também surge um lado criativo, imaginativo, que hoje em dia é raro.
– Vivemos numa era em que as redes sociais são um veículo de perfeição. Há constantes comparações de beleza, de bens materiais, de vidas que parecem perfeitas, o que também gera algum tipo de frustração.
– Gera bastante, até. Cria a ideia falsa de que não acordamos com olheiras, de que o cabelo não está despenteado, de que não temos borbulhas, de que estamos sempre num estado de perfeição ou num cenário idílico. Sempre à espera de validação.
– É a tal confusão entre o ser e o parecer que menciona no livro?
– Sim, e há miúdos que estão de facto muito dependentes disso, que publicam fotografias a partir de determinada hora para terem mais visualizações, mais likes. É tudo muito fabricado, o que cria uma expectativa imensa em relação à imagem.
– Tem uma filha menor. Certamente tem redes sociais. São controladas por si?
– Sim, ela tem redes sociais. Mas tanto eu como a minha mulher nunca a controlámos e não advogo isso para a maioria dos pais. Não defendo o exacerbado controlo parental.
– Terem esse acesso é quase como se quando éramos adolescentes nos lessem o diário e invadissem a nossa privacidade?
– Exatamente isso. Há pais de adolescentes que têm sempre de saber o código de acesso ao telemóvel dos filhos, e isso é como espreitar pelo buraco da fechadura. Se têm telemóvel, mal ou bem, é deles. Compete-nos reforçar a responsabilidade dos nossos filhos, conversar com eles sobre os riscos que poderão correr, alertá-los e, obviamente, estarmos atentos, mas deixá-los ir descobrir o mundo.
– Deixar os filhos voar acarreta sempre um risco com o qual muitos pais não querem lidar.
– Mas o melhor é assumir e aceitar esse risco como um desafio próprio do crescimento, da vida. Hoje as circunstâncias mudaram muito, sim, há mais solicitações, mas também é importante que os jovens conheçam e ganhem os seus próprios limites e mecanismos de defesa.
“Como pai, tento ser o melhor possível ou suficientemente bom, mas reconheço que tenho imperfeições e falhas.”
– Enquanto pai, terá também muitos desafios. Com que dificuldades é que se depara?
– Tenho muitos desafios e enganem-se as pessoas que acham que os meus filhos são perfeitos e que eu também o sou. Como pai, tento ser o melhor possível ou suficientemente bom, mas reconheço que tenho imperfeições e falhas. Os meus filhos já me lançaram vários desafios, a mim e à minha mulher, que nos obrigam constantemente a readaptar-nos perante ideias que já tínhamos sobre eles ou até coisas que imaginávamos que seria o expectável dentro do trajeto deles.
– Os filhos não são perfeitos, os pais também não. Que conselhos dá aos tais pais que exigem a perfeição e aos filhos que querem ser perfeitos para não defraudar as expectativas dos pais?
– Um conselho que dou é centrarem-se no título do livro, aceitarem que há falhas, que são naturais, e que, mesmo quando o desempenho acaba por ser bom, as falhas existem nesse mesmo trajeto.
Agradecemos a colaboração de Tantos Livros, Livreiros