Deixou a Fuzeta, a pequena vila piscatória onde nasceu e cresceu, cedo, com uma mala cheia de sonhos e a vontade de conhecer o mundo que sabia existir para além da linha do horizonte que via da sua janela.
Depois de se licenciar em Relações Internacionais, em Lisboa, Carolina Afonso, de 42 anos, trabalhou na área até descobrir que o seu desempenho profissional tinha muito mais a ver com marketing. Investiu em formação, doutorou-se e foi fazendo o seu percurso em empresas tecnológicas até integrar o Gato Preto, para assumir o marketing, com a missão de expandir o digital. Não foi preciso muito tempo para ascender a CEO.
Este ano foi considerada pela Forbes uma das mulheres mais poderosas nos negócios em Portugal.
Paralelamente, dá aulas na universidade e é mãe de dois filhos, Gonçalo, de 10 anos, e Artur, de 4, os seus mais permanentes e melhores desafios.
– Quando vivia na Fuzeta, os seus sonhos eram de maior dimensão por ter a grandeza do mar no horizonte?
Carolina Afonso – Eram. A Fuzeta é mesmo junto à ria Formosa, o horizonte está sempre presente e, no caso dos meus pais, viviam mesmo na primeira linha, então o que acontecia é que, desde que acordava, o horizonte estava lá e há aquela dimensão quase poética de ultrapassar a linha e ver o que está mais além. Portanto, sim, os sonhos têm uma dimensão maior. Fantasiava muito sobre o que estaria para além e isso, ao mesmo tempo, também era um impulso. Tudo se compunha para querer chegar mais longe. Foi muito decisivo para mim ter nascido e crescido no sítio onde tive o privilégio de o fazer.
– Atualmente ocupa o cargo de CEO, sendo considerada uma das melhores gestoras do país. Como se sente nesta posição?
– É um enorme privilégio trabalhar numa marca conceituada, portuguesa e com presença em Espanha e França. Simboliza também um reconhecimento pelo meu percurso. Já era profissional na área de marketing e tecnologias e liderava equipas em empresas multinacionais. Fui sempre crescendo ao longo da minha carreira, sempre muito nova para o desafio que me estava a ser proposto. Na Asus assumi a Direção de Marketing com 27 anos. Não é fácil ser nova e mulher em contextos maioritariamente masculinos. Este desafio acaba por ser uma responsabilidade acrescida que faz match com o meu percurso. Tudo faz sentido quando olho para trás e é bom ter esse sentimento.
– O que a fez escolher Rela-ções Internacionais, sendo que o seu percurso profissional está assente na gestão?
– Escolhi Relações Inter-nacionais porque queria ser diplomata, conhecer outras culturas, outros países, poder promover Portugal lá fora era o que me movia. Acabei por ir parar à Câmara do Comércio Britânica depois de ter terminado o curso e aí percebi que aquilo que fazia era, na realidade, marketing sem ter essa base. Foi nessa altura que decidi especializar-me nesta área com pós-graduação e doutoramento, o que me permitiu ir crescendo para lá das Relações Internacionais. Se olhasse para trás, mesmo não parecendo uma escolha muito óbvia, faria tudo outra vez. A formação não tem de ser sempre a mais lógica e linear, não tem de se começar pela Gestão para se chegar a um cargo de CEO. Temos muito a ganhar com a diversificação de currículos. Sinto-me uma profissional muito mais completa por ter feito essa escolha.
– Dedica muitas horas por dia ao trabalho?
– Trabalho muitas horas, mas trata-se mais da energia que temos de despender do que o tempo. Há desafios que requerem bastante energia e outros menos e temos de ir doseando. E depois há o tema pessoas. Quando se chega a estas posições, não se trata apenas de gerir um negócio. Há a componente humana, sem a qual não é possível haver negócio, e, portanto, é necessário ter atenção, saber cuidar, acompanhar e gerir as pessoas para que elas também consigam aportar valor à organização.
– Há uma gestão feminina e outra masculina ou trata-se apenas de um mito na hora de decidir?
– Acredito sobretudo na competência e custa-me ver que no século em que estamos as questões de género ainda são um tema. Infelizmente, essas assimetrias existem e é preciso corrigi-las. Senti-as na pele, mas quero acreditar que daqui em diante se abrirão portas para que a competência possa reinar.
– Mas há um olhar diferente?
– Sim, e ainda bem que há esse olhar. Se houvesse mais mulheres no topo, teríamos uma liderança diferente. Eu continuo a privilegiar muito os meus traços femininos e acho que é uma mais-valia que se traz para a gestão. Há também um olhar diferente. Temos uma carga cultural e histórica muito marcada por uma forte presença masculina neste tipo de funções e a diversidade faz sempre diferença. É bom agitar as águas e trazer ventos de mudança e um outro olhar. No caso do Gato Preto, temos a particularidade de os nossos clientes serem maioritariamente mulheres, portanto, na verdade, faz todo o sentido um olhar e uma sensibilidade diferentes.
– Encontra-se num mercado muito dinâmico. O que distingue a sua empresa?
– O que nos distingue é o design. Os nossos produtos são únicos e icónicos. Acho que não há ninguém que não tenha pelo menos uma caneca do Gato Preto. Estamos na casa das pessoas em algum elemento. Conseguimos identificar os nossos produtos e, quando assim é, está tudo certo.
– E há que gerir a vertente profissional intensa com a maternidade…
– Sim. Tenho dois filhos, que são o meu maior desafio e a maior conquista também. A maternidade é a grande diferença da liderança no feminino. Não acho que se tenha de optar por maternidade ou por carreira, pois não me faz sentido nenhum. Quero estar presente nos dois lados e esforço-me para que tal possa acontecer. É conciliável e desejável para a nossa própria realização. A gestão disto tudo tem dias melhores e outros piores e dizer que há equilíbrio não seria verdade. Tento gerir da melhor maneira possível todos os desequilíbrios. A nossa matriz cultural tem sempre a culpa muito presente, o que não existe nos países anglo-saxónicos. Vivi na Holanda e percebi isso. As pessoas lá tomam decisões e têm consequências, o que as faz viver muito mais em paz. Talvez por isso tento não ser assoberbada por sentimentos de culpa de não estar mais presente num sítio ou no outro. O meu equilíbrio está em saber gerir esses desequilíbrios.
– O que significa para si ser mãe de dois rapazes?
– Na verdade é muito engraçado, na medida em que sou a mulher da casa. Também é uma responsabilidade e reflito muito nisso, porque tento incutir nos meus filhos valores diferentes dos tradicionais. Quero que sejam respeitadores e desde muito cedo que os habituo a fazer tarefas domésticas, a respeitar o próximo. Para mim é uma responsabilidade acrescida, sendo dois rapazes, formá-los naquilo que deve ser a sociedade daqui em diante e o papel deles enquanto homens, e espero um dia ser bem-sucedida.
– Veio estudar para Lisboa e é aqui que vive. Já não se vê a voltar para o Algarve?
– As minhas raízes nunca vão sair do sítio. Sou da Fuzeta com muito orgulho, a minha família está lá toda e é sempre para onde vou, seja nos momentos de felicidade ou de tristeza. Saber que lá há um porto de abrigo e uma espécie de santuário, onde tenho as minhas reflexões, faz com a minha terra seja sempre um sítio muito especial para mim e para os meus filhos, que adoram lá estar. Lá sou a Ana, não a Carolina, de chinelos no pé e cabelo à solta. Mas decidi voar – acho que é possível ter raízes e ter asas ao mesmo tempo –, estudei em Lisboa, vivi na Holanda, durante oito anos viajei com muita regularidade para a Ásia, porque trabalhava numa multinacional de Taiwan, e agora a minha base está em Lisboa e é, de facto, uma cidade de que gosto e em que me realizo, tem poesia, que é outra das minhas paixões.
– Também tem horizonte com o Tejo e o mar perto.
– Isso é muito importante para mim. Preciso de viver onde tenha a linha do horizonte. Sempre. Em Lisboa vivo perto do rio também com essa intenção. Tranquiliza-me e traz-me paz sentir que onde quer que esteja sinto o cheiro do mar, que é parte da minha essência.
Agradecemos a colaboração de Palácio Nacional da Ajuda