A história de Miguel Ramalho começa a 3 de julho de 1987, ano em que nasceu na vila setubalense da Moita, no seio de “uma família humilde”, como conta à CARAS durante uma conversa que decorreu no Chiado, em pleno coração de Lisboa.
No ano em que comemora 20 anos de atividade artística, o bailarino regressa ao palco do Teatro Camões, sede da Companhia Nacional de Bailado (CNB), situado no Parque das Nações, em Lisboa, para dançar as duas obras que marcam o arranque da nova temporada: The Look, com coreografia da israelita Sharon Eyal, cujos movimentos repetitivos e sincronizados pretendem criar um efeito hipnótico, e Supernova, uma peça vanguardista assinada pela dupla formada pela espanhola Iratxe Ansa e pelo italiano Igor Bacovich. Estas duas peças serão dançadas de 17 a 27 de outubro.
Antes de passarmos à conversa com Miguel Ramalho, que é considerado por muitos o melhor bailarino português a dançar em território nacional, convém referir qual a programação que os apreciadores desta arte do tempo podem esperar na temporada de 2024/2025, que foi ainda delineada pelo anterior diretor artístico, Carlos Prado, que já foi sucedido por Fernando Duarte. Curiosamente, ambos são, tal como Miguel Ramalho, naturais do distrito de Setúbal.
Assim, para a quadra natalícia (de 11 a 27 de dezembro) está agendada a obra Alice no País das Maravilhas, coreografada pelo cubano Howard Quintero.
Já em 2025, a temporada começa com um triple bill, isto é, três peças de outros tantos autores, nomeadamente Workwithinwork, do nova-iorquino William Forsythe, Upstream, do britânico Andrew McNicol, e Stravinsky Violin Concerto, do russo George Balanchine. Para ver entre os dias 2 de fevereiro e 2 de março.
O australiano John Auld inspirou-se em Arthur Saint-Léon, Enrico Cechetti e Marius Petita para coreografar Copélia ou a Rapariga de Olhos de Esmalte, que a CNB apresenta de 11 a 29 de abril. A época encerra, de 19 a 22 de junho, com duas obras que nos chegam da Suécia: Walking Mad, de Johan Inger, e Cacti, de Alexander Ekman. Obras em que certamente poderemos apreciar o extraordinário talento de Miguel Ramalho, que em 2008 ingressou na CNB, tendo sido promovido a primeiro bailarino em 2020. Antes, em 2017, iniciou o seu percurso coreográfico. Já lá vamos, pois primeiro, como em todas as histórias, há que começar pela forma tradicional…
– Era uma vez um rapazinho que sonhava jogar à bola… Como é que esse menino, nascido na Moita, se interessa por bailado?
Miguel Ramalho – Foram vários acontecimentos curiosos e até aleatórios. Passo a explicar: vivia num bairro muito complicado, um bairro social, com os meus pais, que não eram pessoas com muitas posses – nunca o foram –, e na escola tive uma professora que, curiosamente, enviava muitos alunos para o Conservatório. Essa professora ensinava muitas vezes, no final das aulas, uns galopes, uns passos de dança, e eu não gostava nada, pois queria jogar futebol.
– Ainda assim, acabou no Conservatório a aprender esta arte do tempo. Como é que aconteceu?
– Os meus pais tiveram de ir trabalhar para Lisboa, onde o meu irmão também estudava. Eu era uma criança de 8 ou 9 anos e não podia ficar na Moita com uma chave de casa. Era muito perigoso. A minha mãe decidiu que era mais fácil para todos se eu fosse estudar para Lisboa, ficando assim perto da família. Falou com essa professora, que a aconselhou a inscrever-me no Conservatório.
– Por alguma razão em especial?
– Era um miúdo muito criativo e no Conservatório iria beneficiar dessa criatividade. Além do mais, era uma escola gratuita e ficaria a estudar perto de onde a minha mãe trabalhava. Eu nem sabia que havia a obrigatoriedade de se fazer dança, teatro ou música. Achava que era uma escola dita normal, com algumas atividades extracurriculares, mas não, a dança era obrigatória. Fui-me habituando – tinha facilidade em fazer os movimentos –, fui fazendo amigos, havia uma certa competição e queria sempre fazer melhor… Tudo de forma desportiva, nunca pensei ser bailarino. Quando cheguei ao 9.º ano, por volta dos 14, 15 anos, tive de optar.
– Entre o futebol e a dança?
– Sim, os treinos de futebol eram depois das aulas. No Conservatório as aulas acabavam às oito da noite e, embora tivesse tido, como todos os miúdos, convites para jogar em vários clubes, gostava muito do ambiente escolar, da camaradagem artística. Havia uma vibração muito especial naquela escola e fiquei até acabar o Conservatório.
– Mas continuava a não pensar enveredar pelo bailado?
– Tinha a ideia de tirar Direito, queria ser advogado.
– É nessa altura que se dá o encontro com o coreógrafo Vasco Wellenkamp…
– Para a disciplina de Música tive de fazer um trabalho sobre AmarAmália, uma peça brilhante do Vasco, que foi à nossa escola dar-nos umas explicações. Nesse dia também assistiu à nossa aula de Técnicas de Dança Moderna. No final, após fazer um pequeno discurso, disse que gostaria de falar com três pessoas. Depois de indicar dois alunos que estavam mais à frente, apontou com o dedo e disse: “Tu, aí atrás.” “Eu?” Embora estivéssemos a seis meses do final do ano letivo e a CNB tinha prioridade sobre a escolha dos bailarinos, ele disse-me que gostaria que eu ingressasse na sua Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC). Disse-me que era muito talentoso e que estava a precisar de bailarinos estagiários e que daí a duas semanas estaria em Nova Iorque a dançar.
– Foi, ao mesmo tempo, convidado para estagiar na CNB?
– Na altura achei melhor começar por uma companhia mais pequena, para não ficar em lista de espera para dançar. Embora a CNB tivesse mais projeção, a CPBC permitia viajar mais, ter mais aventura. Tudo aconteceu ao sabor do vento, como se diz, não planeei ser bailarino, ir para o Conservatório; sempre fui muito trabalhador, mas nunca tracei objetivos. Tudo aconteceu naturalmente.
– Como é a vossa relação? O que é que o Wellenkamp representa para si?
– O Vasco é o meu mestre, uma das pessoas mais importantes que conheci, que mudou a minha forma de dançar, que apostou em mim e que me adora como um filho. Fui o primeiro coreógrafo com o qual ele dividiu uma obra, o que me deixou muito honrado. Já fui seu assistente coreográfico por diversas vezes e sou uma das pessoas que remonta as suas peças, como aconteceu recentemente na CNB com Sinfonia dos Salmos.
– Como bailarino, o que prefere: clássico ou contemporâneo?
– É uma questão de preferência física e emocional… Gosto mais da dança contemporânea, que é um bocadinho mais livre, mais humana e mais verdadeira. Podemos ser nós próprios em cena e vivenciar experiências muito parecidas às da nossa vida. Tanto as coisas boas como as más estão presentes no movimento de dança contemporânea. As sensações físicas, musculares, são muito mais prazerosas e o corpo agradece na maioria das vezes [risos]. A dança contemporânea é um bocadinho mais honesta – o amor, a felicidade e a tragédia são menos teatrais, ou seja, as emoções transmitidas são mais reais. Na dança clássica só existe uma maneira de fazer, e isso obriga a uma disciplina muito grande. Mas quando um espetáculo de dança clássica é bem feito, é absolutamente brilhante.
– E qual a sua personagem favorita das obras clássicas ou neorromânticas?
– O Mercúrio de Romeu e Julieta, que tem muito a ver comigo: é uma personagem muito brincalhona e muito sedutora. Também gostei imenso de dançar o príncipe Albrecht de Giselle.
– Como é que surge o Miguel coreógrafo?
– Acho que desde os 18 anos que sou criador… Sempre fui cocriador nas peças de todos os coreógrafos. Nunca fui um bailarino de reprodução, sempre ofereci a minha criatividade. A minha carreira como bailarino ajudou a desenvolver uma linguagem muito própria e que é reconhecida.
– Em que é que se inspira para criar?
– Em muitas coisas. Às vezes, a forma como uma pessoa está sentada na rua é tão poética que me inspira. Outras vezes é a música, a luz, o cheiro… Um filme, um livro, uma pintura, as minhas memórias – há imensas fontes de inspiração. E, claro, os bailarinos, a forma como um corpo de um bailarino se expressa. Nas obras os bailarinos são, obviamente, o mais importante.
– A música é relevante na sua expressão artística…
– Não consigo passar um único dia sem ouvir música. Posso dizer que, quando não estou muito bem, a música e a dança são a minha salvação.
– Já não viveria sem dançar?
– A dança influencia muito aquilo em que a pessoa se torna. E dançar torname uma pessoa melhor.
– A grande bailarina russa Maya Plitestskaya dizia que a dança é 5% de inspiração e 95% de transpiração. Concorda?
– A dor e o prazer andam de mãos dadas. Dançar é, em suma, muito desafiante, quer física quer emocionalmente.
– Que balanço faz dos 20 anos de carreira que está a celebrar nesta temporada?
– Digo, com orgulho, que não poderia imaginar uma carreira mais bonita. Não poderia vivê-la com mais amor e dedicação e não ousaria pedir maior sensação de realização. Agradeço a todos os professores, ensaiadores, coreógrafos, diretores, mentores, todas as equipas técnicas de vários cantos do mundo que partilharam esta jornada comigo. E agradeço a todo o público pelo seu carinho e aos que amo e sempre me apoiaram. Sem dúvida que este pedaço de tempo me marcou como artista, mas sobretudo como homem.