Chama-se Carmen Ferreira, mas é como “enfermeira Carmen” que tem ganho reconhecimento no mundo das grávidas, bebés e pais de primeira viagem. Com mais de 157 mil seguidores no Instagram, um canal de YouTube e três livros no mercado – Estamos Grávidos! E Agora?, Nascemos! E Agora? e uma agenda planner –, onde tem partilhado inúmeros conselhos e dicas úteis, a especialista em saúde materna e obstétrica tem dedicado a carreira a tentar transformar a maternidade numa experiência humanizada. Com 15 anos de experiência na área e mais de mil atendimentos a mães em todas as fases da maternidade, a enfermeira Carmen é um bom exemplo de como, quando se tem vocação e paixão pelo que se faz, os dias de trabalho se podem tornar mais leves e gratificantes.
– Escolheu, há 15 anos, uma área que parece estar a atravessar uma crise sem fim, pelo menos nas urgências de obstetrícia.
Carmen Ferreira – Sim, estamos em contextos muito difíceis, mas atualmente já não estou no SNS. Saí há uns sete anos.
– Era difícil trabalhar no SNS?
– Sim, era muito difícil trabalhar no SNS e fazer um bom trabalho, e eu sentia que precisava de algo mais para me motivar. Mas tenho muitas saudades.
– Porque faltava quase tudo?
– Porque, às vezes, estamos muito presos a protocolos por falta de recursos, não só físicos como também humanos, e nesta área há técnicas e protocolos que temos que assegurar, claro, mas não podemos perder a humanidade, e acho que estávamos a começar a roçar esta perda de humanidade. Lidar com isso era para mim muito difícil e tive de fazer uma escolha. Estava a trabalhar em simultâneo noutros projetos na área da obstetrícia, em clínica privada, portanto tinha noção de várias realidades e sabia que era possível fazer diferente e melhor. Optei por ficar no privado, onde tinha desafios diferentes em termos de equipa, de formações, de workshops, que o SNS não tinha. E, entretanto, surgiu o convite para escrever o primeiro livro.
– Que lançou antes da pandemia.
– Um mês antes, sim. Como a seguir ficámos todos em casa sem recursos, foi uma das formas de os pais se prepararem e de terem algum suporte para o parto. E correu muito bem. Depois nasceu o segundo livro, onde aprofundei alguns temas, e mais tarde a agenda, onde os pais podem ir apontando o que acontece com o bebé ao longo da gestação e nos primeiros meses de vida.
– Se pudesse dar um conselho a mulheres que estão prestes a ser mães, qual seria?
– Para confiarem no seu corpo e no seu bebé e prepararem-se no sentido de estarem confiantes. Às vezes pomos muita pressão em cima de nós, queremos saber tudo, fazer tudo, e o conhecimento é imenso e não vamos absorver tudo. Ou seja, fazer aquilo que nos faz sentido e, no fim do dia, estarmos confiantes em nós mesmas e na equipa de saúde que nos acompanha.
– A profissão de parteira exige conexão com as mães. Há aqui uma ligação emocional muito forte?
– Acho que sim. As pessoas vão sempre lembrar-se de quem esteve no parto delas. Quem as ajudou, o que disseram. Acho que isso marca profundamente.
– As grávidas conseguem lembrar-se de tudo aquilo que disseram durante o trabalho de parto?
– Conseguem. Sai de tudo, porque estão na “partolândia” e há aqui um pico de endorfinas brutal. Depois, naquela primeira hora de vida, é uma experiência tão forte que quer a mãe quer o bebé estão num momento muito íntimo. É uma vivência tão grande que até mesmo os pais se conseguem lembrar do cheiro, do que ouviram, das sensações, de tudo.
– E poder fazer parte desse universo é mágico, calculo.
– É um privilégio.
– Qual a sua visão sobre o parto humanizado? Há um longo caminho a percorrer? Afinal, os partos não têm de ser iguais para todas.
– Certo, mas, independentemente do tipo de parto, do que a mulher pretende, é preciso respeitá-la e tratá-la com humanização. Partos humanizados deviam ser todos. O que às vezes nos acontece a nós, profissionais de saúde, é fugir-nos um bocadinho da mão esta questão da humanização e pensarmos mais na fisiologia, porque a verdade é que estamos programados para tudo o que seja de alarme, de patologia, de assistência diferenciada. Mas depois temos toda a parte biológica e fisiológica de um parto, que, se não estivéssemos em contexto hospitalar, o corpo iria fazê-lo e desenrolar-se. Temos que voltar a acreditar um bocadinho nessa fisiologia. Quando falo do parto, falo também da parte da amamentação. Chegamos a questionar o potencial da mulher em produzir leite para o seu bebé, quando está provado que, do ponto de vista bioquímico, não há nada que questionar no leite materno, mas continuamos a perguntar: “O bebé só faz mama?” Parece que “só” é pouco, é insuficiente. Parece que a mulher é insuficiente para parir, é insuficiente para amamentar… Precisamos de ter esta confiança no nosso corpo, nos processos biológicos, mas também respeitar o que aquela mulher pretende para si.
– Já ajudou a fazer nascer muitos bebés, mas ainda não passou por essa experiência. É um desejo ser mãe?
– É um desejo, sim, mas é algo que a vida ainda não me proporcionou e, como também vamos ao sabor da vida, aqui está uma prova de que não controlamos tudo.
– Existem mitos ou ideias erradas que as pessoas ainda têm sobre partos que queira esclarecer?
– Mitos há muitos. Há esta ideia de que o bebé tem que nascer antes das 40 semanas, e não tem. A reta final da gravidez traz uma ambivalência grande para a grávida. Por um lado, queremos conhecer rapidamente o bebé, por outro, queremos que ele continue protegido na barriguinha. Mas se não houver nenhuma indicação clínica, não temos que acelerar o seu nascimento. A partir das 40 semanas eles podem nascer quando quiserem. Também há o mito de que parto é sinónimo de dor e sofrimento, e não tem de o ser. A contração sim, acarreta uma sensibilidade, eventualmente um desconforto associado, mas a forma como lidamos com essa dor não tem que ser um sofrimento. Temos várias formas de gerir e minimizar a dor.
– Na amamentação também se cometem muitos erros, que acabam por levar mães a desistir de o fazer?
– Sim, e o apoio é fundamental, não só da família, como também da parte dos profissionais, porque muitas destas desistências vêm de desinformação e de falta de apoio técnico.
– A preparação para o parto também deveria ser uma prioridade para os futuros pais?
– Sim, até porque as pessoas acham que a preparação para o parto é mudar fraldas num boneco, o que também fazemos, mas é mais perceber cenários, explicar a fisiologia e, acima de tudo, haver uma envolvência do casal e da família. E isso é uma grande mais-valia. Para a confiança no pós-parto é fundamental. Uma mulher confiante no seu processo de maternidade, de parto, de amamentação, faz toda a diferença.
Maquilhagem: Sinval de Souza
Agradecemos a colaboração de Hotel Myriad by SANA