
Em Portugal, a obesidade afeta um número crescente de pessoas e continua a ser um tema à volta do qual circulam inúmeros mitos e preconceitos. O prof. dr. Gil Faria tem dedicado a sua carreira a mudar vidas e a desmistificar a visão sobre esta condição. Especialista em cirurgia da obesidade e metabolismo, coordenador dos centros de Tratamento da Obesidade do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e do grupo Trofa Saúde, e professor da Faculdade de Medicina do Porto, o médico aborda os desafios do tratamento, os avanços tecnológicos na área e a necessidade de sensibilizar a sociedade para encarar a obesidade como uma doença que requer empatia, compreensão e soluções eficazes. “A obesidade não se resolve apenas com força de vontade, e precisamos de parar de culpar os doentes pela sua condição”, lembra o médico, autor principal de uma nova técnica cirúrgica, Koala Sleeve, que consiste numa adaptação do sleeve tradicional, controlando um dos principais problemas associados, o refluxo gastroesofágico.
– O que o motivou a dedicar-se à cirurgia metabólica e à obesidade?
Gil Faria – A obesidade é uma das poucas doenças em que a culpa, em vez de recair no problema, recai sobre o doente. Se alguém tem um enfarte, ninguém pensa: “Bem feito, devia cuidar da alimentação!” Por outro lado, se uma pessoa tem obesidade, é automaticamente rotulada de preguiçosa e desleixada. Isto sempre me incomodou. A obesidade é uma doença crónica, multifatorial e extremamente complexa, que não se resolve apenas com força de vontade. Durante a minha formação, um dos meus mentores trouxe de um congresso a informação de que a cirurgia poderia “curar” a diabetes e senti que seria esse o foco da minha carreira. Ao acompanhar doentes submetidos a cirurgia e o poder transformador deste tratamento, percebi que podia fazer a diferença para mudar vidas, sem julgamentos.
– Ouve-se dizer muitas vezes que é fácil perder peso, basta comer menos e fazer mais exercício. Concorda ou é um dos mitos associados à obesidade?
– Diria que esse é o pai de todos os mitos! Se fosse assim tão simples, a obesidade não seria um problema global. Não nos tornamos todos indolentes e gulosos nas últimas duas gerações. O organismo tem mecanismos poderosos para defender o peso que considera ideal. Quando alguém perde peso, acontecem várias alterações no organismo para aumentar a fome (estimular o aporte energético) e para diminuir o metabolismo (controlar o gasto energético). O nosso cérebro tenta, de forma inconsciente, preservar as reservas de gordura a todo o custo. Dizer é “só comer menos e andar mais” a uma pessoa com obesidade é como dizer a alguém com depressão para “pensar positivo”. Ambas as afirmações parecem lógicas, mas ignoram completamente a essência e a complexidade destas doenças.
– Os números de obesidade têm crescido nos últimos anos. O que acredita estar na raiz deste aumento?
– Temos uma grande dissociação entre a evolução biológica e a evolução social. A fisiologia do nosso organismo mantém-se na Idade da Pedra (onde a comida era escassa e era fundamental armazenar energia para sobreviver), mas em poucas gerações o nosso desenvolvimento social alterou de forma significativa o estímulo ambiental. De repente, vivemos num mundo onde a comida ultraprocessada está facilmente disponível, é barata e é produzida com o propósito de ser irresistível. Além do mais, a nossa rotina também se tornou mais sedentária. Está, portanto, criado o ambiente perfeito para o desenvolvimento da obesidade.
“Investimos pouco na educação alimentar, na promoção de um estilo de vida saudável e na definição do urbanismo que facilite a atividade física.”

– Quais são os maiores desafios no combate à obesidade em Portugal?
– O primeiro desafio é o preconceito. Ainda se acredita que a obesidade é uma escolha individual em vez de uma doença. Ainda se continua a perguntar “Como te deixaste chegar a este ponto?”, como se os doentes com obesidade tivessem desenvolvido a doença apenas por capricho pessoal. E este preconceito dificulta o acesso ao tratamento, incluindo a cirurgia, porque há um estigma enorme. Há o estigma pelo lado da sociedade, que acha que este tratamento não deve ser oferecido pelo SNS, porque se as pessoas quisessem emagrecer conseguiam, e há o estigma pessoal, em que os próprios indivíduos afetados consideram que optar por um tratamento médico é admitir um falhanço pessoal, porque não conseguiram tratar a obesidade com força de vontade. Outro problema é o acesso limitado a cuidados especializados, determinantes para o controlo da doença a longo prazo. Depois, há a questão da prevenção. Investimos muito pouco na educação alimentar, na promoção de um estilo de vida saudável e até na definição do urbanismo que facilite a atividade física. Andamos sempre atrás do problema, ao invés de o prevenir.
– Que papel os avanços em inteligência artificial e tecnologia podem desempenhar no diagnóstico e tratamento da obesidade?
– A tecnologia está a abrir caminhos incríveis. Já existem aplicações móveis que monitorizam os padrões de atividade física e de consumo alimentar, ajudando as pessoas a fazer melhores escolhas. O desenvolvimento tecnológico e a inteligência artificial podem trazer novos fármacos, com efeitos mais precisos no controlo do metabolismo energético e na regulação do peso, e os tratamentos podem ser mais personalizados, através da avaliação de dados genéticos, hormonais e metabólicos. O futuro passa por tratamentos cada vez menos invasivos, com recuperações mais rápidas e personalizados para cada doente.
– Pode explicar, de forma acessível, como funciona a técnica Koala Sleeve e quais são as suas vantagens em relação ao sleeve gástrico tradicional?
– O sleeve gástrico é a técnica cirúrgica para tratamento da obesidade mais utilizada em todo o mundo. Alia uma boa eficácia a reduzidas taxas de complicações. Um dos seus principais problemas é o risco de desenvolvimento do refluxo gastroesofágico. Isso pode levar a que, em alguns doentes, seja necessário optar por outras técnicas cirúrgicas mais eficazes para o refluxo, mas com maior risco de complicações a longo prazo. A técnica Koala Sleeve incorpora a criação de uma “válvula” com o estômago restante, que permite controlar este risco de refluxo.
– A obesidade é frequentemente descrita como uma epidemia silenciosa. Como podemos sensibilizar a população sobre os riscos associados?
– O mais importante é acabar com o estigma. Enquanto a obesidade for vista como sinónimo de “preguiça” ou “gula”, as pessoas vão ter vergonha de procurar ajuda. Vão sentir-se cada vez mais culpadas pela sua doença e a sociedade não vai investir no seu tratamento. Precisamos de falar sobre a obesidade como falamos de outras doenças crónicas, como a diabetes ou o cancro. Além disso, é essencial transmitir informação clara às pessoas, para que percebam que existem tratamentos eficazes. Acompanho vários doentes que viveram décadas a tentar resolver a obesidade sozinhos, achando que falharam, quando apenas precisavam de um tratamento eficaz e um acompanhamento adequado.
“Existem inúmeros fármacos em teste para o controlo da obesidade, que ajudam a reduzir o apetite e a otimizar o metabolismo.”

– Que avanços tecnológicos ou terapias acredita que serão fundamentais no futuro do tratamento da obesidade e das doenças metabólicas?
– Existe uma grande revolução em curso na área dos medicamentos. Existem inúmeros fármacos em teste para o controlo da obesidade, que ajudam a reduzir o apetite e a otimizar o metabolismo. Os fármacos e a cirurgia não têm de ser “rivais”, mas, sim, aliados no tratamento da obesidade. As cirurgias estão a tornar-se cada vez menos invasivas, com técnicas mais precisas e eficazes, e com recuperações progressivamente mais simples e céleres.
– Além da cirurgia, que outras estratégias acredita serem essenciais para um tratamento eficaz e duradouro?
– A cirurgia não é um ponto final no tratamento da obesidade, é um ponto de viragem. O acompanhamento multidisciplinar (nutricional, psicológico e médico) é fundamental para garantir resultados a longo prazo. A alteração do estilo de vida, com instituição de uma alimentação mais saudável de forma sustentada, e a prática regular de exercício físico são essenciais para manter a doença sob controlo. E também é importante ajustar as expectativas: a obesidade não tem “cura”. Tem tratamento ou controlo. Tal como quem tem hipertensão pode necessitar de medicação para toda a vida, quem tem obesidade precisa de acompanhamento contínuo e poderá necessitar de vários tipos de intervenção ao longo da sua vida.