Com os novos regulamentos, o 908 vai passar o testemunho ao ainda chamado 90X. Mas antes, fomos pilotos por um dia na equipa Peugeot Sport, trocando de lugar com Pedro Lamy. A experiência, essa, foi incrível…
Na chegada ao circuito de Paul Ricard, o jantar foi aproveitado para conhecer alguns elementos da Peugeot Sport que no dia seguinte me iriam orientar no test drive e para assistir na primeira pessoa ao espirituoso ambiente de cumplicidade que existe entre os pilotos da equipa. Fiquei a saber desde logo que o
co-drive que iria dar arranque ao programa do dia seguinte não seria com o Pedro, mas sim com Nicolas Minassian. Enquanto isso, ouvi as aventuras de Anthony Davidson sobre como tinham decorrido os
co-drives do dia, num habitáculo em que por norma apenas cabe um. E, no meio de tanta boa disposição, Davidson e Lamy lá foram criando pressão ao referir que havia a barreira 1m 55s para bater, para defender a honra da imprensa portuguesa. Talvez por isso, quando ao pequeno-almoço da manhã seguinte perguntaram se tinha dormido bem, tive de mentir com quantos dentes tinha na boca…
ESPAÇO APERTADO PARA DOIS
O primeiro exercício do dia era perceber como é que os ‘pilotos da casa’ tratam a sua máquina. Com o 908 já com o aquecimento feito, Minassian já estava prontinho para me receber. Não é todos os dias que nos podemos dar ao luxo de ‘ombrear’ com um dos melhores pilotos de resistência da atualidade, mas neste caso era mesmo uma questão de falta de espaço.O francês arranca e vagarosamente escorregámos
pit lane fora. Está um lindo dia de sol, pensava eu para com o fecho do fato de competição – sobretudo porque havia a ameaça de chuviscos -,quando se dá uma explosão de fúria por parte do V12 HDI que me deixou de cabeça encostada à parte de trás do
cockpit. Assim que chegámos à primeira curva e o francês toca no travão, a cabeça entrou logo em vénia… Comecei a perceber que isto estava longe de ser uma brincadeira de meninos e a impressionante força centrífuga ajuda a massacrar o corpo, pois lutamos contra o nosso próprio peso. O 908 segue as ordens de volante como se caminhasse sobre carris, com uma aderência impressionante. A entrada da longa reta Mistralé feita com uma esquerda a fundo e o
grip e a velocidade são de tal forma brutais que ainda os olhos estão postos na saída da curva e já estamos em plena reta. Ainda meio atordoado, Minassian aponta todo contente para o velocímetro no volante, onde pestanejo 300 km/h e estico o polegar em aprovação. A verdade, no entanto, é que já tinha a mente no que se seguia: a mítica curva Signes. Num piscar de olhos, Minassian reduz de sexta para quinta e atira a frente do Peugeot à módica velocidade de 250 km/h, naquela que foi uma das experiências mais exuberantes de loucura que alguma vez vivi, pois não só fiquei com o corpo colado à lateral da coque como achei que ia precisar do auxílio de um
pacemaker, tal o meu ritmo cardíaco. Na sequência sinuosa, a generosidade de Minassian não deixou dúvidas quanto à ligeireza com que trata o 908, aproveitando cada corretor e providenciando travagens de cortar a respiração. De tal maneira que a partir da segunda volta dei por mim a pensar: "Oh não, lá vem mais uma curva…"
MOMENTO DA VERDADE
O respeito pelos pilotos que conduzem protótipos em Le Mans estava ganho. Enquanto recebia um
briefing sobre os comandos no volante e procedimentos de arranque, ia-me mentalizando de que chegara a hora que tanto ansiava. Ao mesmo tempo, tentava ignorar o tom jocoso com que Lamy e Davidson faziam previsões da minha performance.
Já sentado no habitáculo, acabei por optar pela
bacquet do Alex Wurz, que era aquela que me permitia mexer melhor os braços. Sentia-me ofegante enquanto os mecânicos me apertavam os cintos. Era chegado o momento da verdade. Baixados os macacos pneumáticos, o 908 assenta no chão e, com a maior das calmas, arranquei logo à primeira. Desligo o limitador de velocidade à saída das boxes e sinto o furor dos 1200 N.m de binário a catapultarem-me em direção à primeira curva. Sabia que os pneus tinham vindo dos aquecedores, logo podia empenhar-me desde o princípio. Lamy comentara o facto de Minassian travar de pé direito, ao contrário da restante equipa, mas com o pedal de embraiagem tão chegado à esquerda, travar com o esquerdo acabou por ser um reflexo natural. A veemência com que os discos de carbono desaceleram o 908 é impressionante, quase deixando os olhos fora das órbitas, ao passo que a frente é tão sensível a seguir os movimentos da direção que a cabeça só não abana de um lado para outro porque o sistema HANS não deixa; apesar da posição de condução não ser perfeita – o volante está um pouco baixo e o espaço para cotovelos é restrito -, a concentração exigida é tal que rapidamente nos entrosamos. Quando dei por isso, estava a provocar a mim próprio as mesmas sensações que o Minassian me pregara. Neste primeiro turno, iria rodar no Programa 1 (P1) do motor, com menos 140 CV que o P9- usado para qualificação – para me adaptar, pelo que na reta Mistral o 908 não passava dos 278 km/h – até porque a equipa escolheu dotá-lo de forte carga na asa traseira para maior segurança. Ainda assim, enchi-me de coragem, travando na placa dos 100 metros, antes de suster a respiração e apontar a frente para dentro da curva Signes. O que é preciso é fé, pensei. Correu bem. Menos bem foi a entrada na zona sinuosa. Devia ter entrado mais por fora na dupla direita de Beausset e, quando já estou de ‘pé em baixo’, então não é que a curva fecha? Aquele golpe glorioso de direção deu direito a uma valente chicotada de traseira, ao que se seguiu um monumental e fumegante pião… Nem a voz tranquilizante do chefe de equipa pelo rádio adizer "não há problema, dá à ignição e segue" amenizou a vergonha.Sabia que todos tinham assistido ao número de circo pelos inúmeros monitores presentes nas boxes. Nada mau para uma primeira volta…
MOMENTO DA VERDADE II
Depois de analisar o que tinha feito mal, de ter servido de chacota da tripla Lamy/Davidson/Minassian e de ter sido chamado à atenção pelo formato quadrado que dei ao quarteto de Michelin de composto mole,decidi ir com mais calma para o segundo turno. Ia começar com P2,um pouco mais potente, para depois passar a P5 a meio. Senti logo uma resposta mais firme ao acelerador, mas também mais confiança nas reações do chassis. Nas curvas de baixa velocidade o Peugeot mostrava-se até bastante previsível no comportamento, ora puxando um pouco de frente quando exagerava nos ganchos, ora com ligeiros
slides à saída de curvas lentas, como as curvas Camp ePont (entrada da reta da meta), feitas em primeira – a verdade é que o controlo de tração, em modo intermédio, era indispensável. Mas nas curvas de alta velocidade a sensação era que, se alguma coisa corresse mal, nem ganhava para os pensos, apesar das amplas escapatórias coloridas de Paul Ricard. Conforme prometido, o chefe de equipa deu-me ordem para selecionar o modo P5, com o qual o 908 apresentou-me a uma nova dimensão da sua existência. A aceleração tornou-se violenta e as passagens de caixa começaram a suceder-se a uma rapidez estonteante. A velocidade com que chegava às curvas obrigava-mea antecipar a travagem, pois estava por vezes já em quinta onde antes chegava em terceira! Comecei a sentir a necessidade de confiar cegamente na aderência proporcionada pelo enorme apoio aerodinâmico gerado. Quando espreitei 302 km/h a meio dos 1800m da longa Mistral, respirei bem fundo e no cúmulo da minha coragem travei à mesma aos 100 m, reduzi para quinta, e apontei a frente. O efeito de força centrífuga misturado com a sensação de pura acutilância, velocidade estonteante e total
grip, tudo entrelaçado comuma séria dose de genuíno medo só pode ser reduzido a uma palavra:inacreditável… Mais inacreditável quando o repeti na volta seguinte. Embora consciente de que as trajetórias na zona sinuosa precisavam de umas afinações, o cronómetro foi parado no 1m53s. A honra da casa estava salva, até porque o 908 rumou às boxes numa só peça…