Há histórias de vida que facilmente se transpõem para o ecrã e a de
Ana Sofia, de 23 anos, poderia certamente ser uma delas. Oriunda de famílias carenciadas, viu os pais separarem-se quando tinha quatro anos, ficando a cargo do pai. Um ano depois, este entregou-a, juntamente com o irmão,
Sandro, hoje com 19 anos, ao cuidado dos padrinhos. Aos 15 viu abrirem-se-lhe as portas do mundo da moda e aos 17 já morava sozinha em Nova Iorque. Depois de já ter viajado pelos quatro cantos do mundo, Ana Sofia quer agora voar mais alto e pretende ajudar algumas das meninas do local onde cresceu, o bairro social da Outurela, em Carnaxide, onde volta sempre que vem a Portugal.
– Como surgiu a moda na sua vida?
Ana Sofia – Nunca foi um trabalho que achasse que pudesse ter, era uma miúda fisicamente muito insegura, pois não tinha peito, tinha os dentes tortos e a moda surgiu numa altura em que a minha família estava a passar por dificuldades: um
scouter da DXL lançou-me o desafio. Tinha 14 anos e fiquei bastante indecisa, mas, depois, pensando nas dificuldades da minha família, obriguei-me a ir. Estava a estudar, queria ser médica, mas acabei por ir à agência e aceitar. Entretanto, saí de lá e estou na Elite.
– Teve uma infância difícil…
– Não foi tanto a infância, pois até aos dez anos fui uma criança feliz. Aliás, desde que tenha o meu irmão perto de mim, sou feliz. [risos] Foi a partir dos dez anos que a minha vida mudou. Nós vivíamos num bairro social, mas o meu pai, com o dinheiro que ganhava a trabalhar na construção civil, pôs-nos num colégio privado. Vivíamos no bairro, mas depois íamos para o colégio no Restelo, e sempre tive a perceção dos dois mundos. Mas os tempos antes de ser modelo foram realmente difíceis, pois a minha família perdeu um restaurante que tinha, as contas amontoaram-se e comecei a achar que o mundo é muito injusto. Fomos criados pelos padrinhos do meu irmão, e sempre quis retribuir de alguma forma o que eles nos davam, por isso é que entrei para a moda.
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– E por que foram viver com os padrinhos do seu irmão?
– A minha mãe era, e é, uma pessoa psicologicamente muito instável e, quando os meus pais se separaram, o meu pai viu-se sozinho com duas crianças. Não sabia o que fazer e acabou por nos deixar com uma família em quem confiava, mas sempre nos pagou o colégio, pois achava que a educação é primordial. É por isso que ainda hoje o respeito muito. O meu pai sempre foi um homem muito dedicado a nós, esquecendo-se um pouco dele. Viveu nas barracas anos a fio, como eu vivi até aos nove anos, para nos proporcionar a educação que temos.
– E como é a sua relação com a sua mãe?
– Telefono-lhe, visito-a duas a três vezes por ano.
– E guarda alguma mágoa?
– Não. Tive-mos uma conversa há uns anos. A minha mãe é uma pessoa muito complicada e olha para nós com vergonha do que fez, por isso evita estar connosco. Não posso dizer que a respeito, mas aceito-a, cada um gere a vida segundo o que acha melhor… Ela é que escolheu a vida que tem.
– Tudo o que passou tornou-a uma pessoa mais madura?
– Fui uma miúda muito precoce e houve, e há, coisas que jamais terei, como a preocupação de alguém a perguntar a que horas chego a casa. O casal que me criou deu-me carinho, mas sinto sempre que não sou filha deles, não sei muito bem o que é chamar mãe a alguém. Às vezes tento fazê-lo quando estou ao telefone com a minha, mas é muito estranho e para mim essa palavra não faz sentido, julgo que só o fará quando eu for mãe. De certa forma, por um lado, foi bom ser precoce, mas por outro acho que isso me vai prejudicar quando for mãe, pois acho que vou ser uma mãe muito exagerada.
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– E como é a relação com os seus padrinhos?
– Posso dizer que a nossa relação financeira é má, mas a nossa relação afetiva é boa, pois, apesar de tudo, eles dão-me carinho e preocupam-se comigo. Já tivemos fases em que deixámos de falar, mas tivemos uma conversa em que lhes expliquei que não era com dinheiro que iria retribuir o que fizeram por mim. Ainda hoje eles vivem no bairro social da Outurela, onde fico quando venho a Portugal, e sou muito bem recebida por toda a gente.
– Hoje vive em Nova Iorque. Como lida com a diferença entre a metrópole e o bairro social?
– Em Nova Iorque vivo em Uper East Side, que é super
poshi, com muito glamour, depois chego a Portugal e estou na Outurela. Foi lá que cresci, que estão as pessoas com quem me identifico. Nunca neguei as minhas raízes e para mim não faria sentido chegar a Portugal e ir para outro lado. Costumam dizer que a nossa casa é onde o nosso coração está, e se calhar o meu está na Outurela. [risos]
– Hoje tem uma vida desafogada do ponto de vista financeiro. Não lhe dá vontade de ajudar tudo e todos de cada vez que vai ao bairro?
– Gosto de lhes dar um pouco de esperança no futuro. Quem diria que uma miúda como eu, muito rebelde – que ainda hoje sou -, [risos] poderia chegar onde chegou? Comecei agora um projeto com as miúdas do bairro da Outurela e da Portela. Fui abordada por uma assistente social da Câmara de Oeiras que veio ter comigo no dia dos Globos de Ouro e me disse que no bairro onde cresci há muitas meninas que gostariam de ser como eu. A proposta caiu-me do céu, pois sempre tive vontade de fazer qualquer coisa no bairro, mas nunca encontrava nada com que me identificasse… Quando vi que o projeto tinha pernas para andar, foi simplesmente o dia mais feliz da minha vida. No passado dia 7 de agosto tivemos o primeiro encontro com as meninas do bairro. Às 10h da manhã, a hora marcada, não estava ninguém, mas dez minutos depois chegou uma menina e depois outras. Seríamos umas 20, muitas com as mães, o que adorei, pois a minha ideia também era dar-lhes uma noção de que a família é muito importante. Falei da minha história, expliquei-lhes que o limite não tem de ser o bairro e que não temos de fazer a nossa vida lá. Com 15 anos eu tinha um espírito muito lutador que acredito que muitas destas miúdas também tenham. Expliquei-lhes que há vários trabalhos de moda sem ser o meu, que acaba por ser o menos importante, pois há produtores, aderecistas, etc., e até ficaram mais interessadas nesse tipo de trabalhos. Falei de maternidade precoce, planeamento familiar, entre outras coisas, porque acho que é nestas idades que temos de as apanhar. Sinto que foi uma missão cumprida. Isto é uma coisa que tem de ir para a frente e agora preciso do máximo de apoio possível. Quero muito levar este projeto em frente e elevar-lhes a autoestima. A minha ambição maior era organizar, no ano que vem, um campo de férias onde todas partilhássemos as nossas experiências.
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– Foi fácil resistir a todas as tentações que a sua profissão proporciona?
– Foi, pois se há coisa que os meus padrinhos me incutiram, o que lhes agradeço muito, é que podemos sempre escolher entre o bem e o mal. Cada vez que ouvia uma vozinha na minha cabeça a dizer que aquilo poderia estar errado, parava tudo. Aos 15 anos ofereceram-me cocaína numa festa e recusei, e teria sido muito fácil aceitar e experimentar. Há droga em todos os meios, mas na moda é mais visível, as pessoas não têm problemas em assumi-lo, embora hoje em dia já esteja tudo um pouco diferente. Teria sido fácil cair em todas as tentações, mas não gosto do que é fácil.
– Com o passar do tempo, a moda não se tem tornado uma paixão?
– As viagens são uma paixão e um sonho. Antes desta crise ganhava realmente muito bem, agora há menos trabalhos e é mais mal pago, e foi aí que comecei a pensar que deveria voltar à escola, até porque para mim a moda não chega. Tenho um cérebro e, graças a Deus, ele funciona. Sei que sou inteligente e vou usar isso. Tenho 23 anos e as possibilidades são infinitas.
– E a nível pessoal, gostaria de se casar e ter filhos?
– Casar não sei, nem sei se é preciso ter um marido para ter filhos. Para ter um pai que depois não cumpre com o seu papel, não acho fundamental… Na altura em que tive namorado, e vivemos juntos quatro anos, estava superfeliz e aí achava que sim, que iria casar-me. Agora que não deu certo e fui confrontada com a realidade, não sei… Filhos, quero muitos, uns cinco, [risos] e se puder também quero adotar.
– Mas vê-se como mãe solteira?
– Claro. É uma luta muito dura e não acho importante ter um homem ao lado para criar um filho. A maior parte das pessoas que conheço são filhas de pais separados e são normais. [risos]*Este texto foi escrito nos termos do novo acordo ortográfico.