O mundo ainda estava ocupado a sarar as profundas feridas que os seis longos anos da Segunda Guerra lhe infligiram quando Isabel II se tornou rainha de Inglaterra, a 6 de fevereiro de 1952, o dia da morte do seu pai, George VI. No Médio Oriente já tinha sido fundado o Estado de Israel, na Índia Gandhi fora assassinado, na China a revolução comunista instalara Mao Tse Tung no poder e em Inglaterra o heroico Winston Churchill fora afastado do Governo e proferira um discurso em que usara pela primeira vez a expressão “Cortina de Ferro”, ao referir a divisão que se criara na Europa do Pós-Guerra entre os países de Leste, sob o domínio imperialista da União Soviética, e do Ocidente, sob influência dos EUA. Ou seja, quando, aos 25 anos, a princesa Isabel de Windsor se tornou rainha – com Churchill de regresso ao n.º 10 de Downing Street –, o clima dominante era de Guerra Fria.
As temperaturas glaciares das relações internacionais não tinham, ainda assim, impedido que o biquíni invadisse as praias, o rock’n’roll eletrizasse as pistas de dança e os EUA conhecessem um enorme baby boom. Protegido por pesados reposteiros – que evitaram, por exemplo, a contaminação pelo espírito republicano que derrubara a maioria das monarquias europeias logo no começo do séc. XX –, o interior do Palácio de Buckingham parecia, contudo, imune aos “vírus” exteriores, o que terá talvez tornado mais suave o caminho de Isabel em direção ao trono onde, a 2 de junho de 1953, o arcebispo de Cantuária lhe impôs a pesada coroa imperial. Uma coroa que, esta quarta-feira, 9 de setembro, carrega há 23.227 dias, batendo o recorde da mais longa permanência no trono inglês, até agora pertencente à sua tetravó Victoria, que reinou durante 23.226 dias, 16 horas e 23 minutos (de 20 de junho de 1837 até à data da sua morte, 22 de janeiro de 1901).
Isabel, a filha mais velha dos duques Alberto e Isabel de York, não nasceu para reinar, mas o trono tornou-se o seu destino aos dez anos, quando, a 11 de dezembro de 1936, o rei Eduardo VIII, seu tio paterno, abdicou do trono para se casar com uma americana plebeia e duas vezes divorciada, Wallis Simpson. Segundo na linha de sucessão, o discreto, tímido – e gago – Alberto de York (que como rei adotaria o seu quarto nome próprio, Jorge) aceitou carregar ele o peso de manter o Reino Unido e o extenso Império Britânico – aquele onde o sol nunca se punha – sob a tutela de uma monarquia constitucional que lhe dava poucos ou nenhuns poderes a não ser o da coesão simbólica e algo paternalista. Escassos três anos depois, a decisão de permanecer com a família em Inglaterra e suportar ao lado dos súbditos as agruras da guerra (ao contrário, por exemplo, da família real holandesa, que se exilou no Canadá), reforçaria muito positivamente o papel de “pai” dos ingleses, dando à monarquia uma popularidade que nunca antes tivera.
E é ainda sob este sortilégio que os ingleses estão quando Jorge VI morre. O mundo, entretanto, envolvera-se com afinco no esforço de reconstrução do pós-guerra, tornando-se mais industrializado, tecnológico e científico. E também muito mais pequeno, tanto graças aos novos meios de comunicação como ao nascimento da aviação comercial, precisamente no ano em que Isabel II se tornou rainha. Mesmo que orgulhosamente isolado na sua insularidade, dificilmente o Reino Unido e, por contágio, todo o Império Britânico, poderiam não sentir as réplicas dos sismos políticos, sociais, raciais, ideológicos e culturais que eclodiam por toda a parte.
Foi no Egito, protetorado que os ingleses tanto amaram (e tanto pilharam), que começou, logo em 1952, a erosão do império que Isabel recebeu em herança. Mas se os seus antecessores levaram séculos a contruí-lo, a dissolução, essa, foi muito mais rápida, concluindo-se em 1997, com a devolução do protetorado de Hong Kong à China.
Dentro de portas, as primeiras bombas explodiram, literalmente, em agosto de 1969, quando os católicos da Irlanda do Norte retomaram a sua luta de séculos contra a discriminação religiosa a que estavam sujeitos. Estes motins dariam origem a três décadas de intensos conflitos – com o IRA a levar a cabo vários atentados terroristas de grande impacto –, que só acalmaram em 1998, ano em que foi assinado um acordo de paz.
A grande mudança cultural em Inglaterra começaria também nos anos 60. Menos cinzenta desde que, em 55, a lei restringira o uso do carvão que a mergulhava no nevoeiro, Londres tornar-se-ia uma cidade cheia de boas vibrações, com os Beatles e os Rolling Stones a liderarem as tabelas dos discos mais vendidos e Mary Quant a revolucionar o mundo da moda com a sua minissaia.
Lentamente, sem bater à porta, os ecos do que se passava nas ruas foram entrando nos palácios reais – os telejornais encarregavam-se de o fazer, por vezes com imagens bem violentas –, e Isabel II não pôde ignorá-los. Não pôde ficar indiferente à transmissão da chegada do Homem à Lua, às imagens da queda do Muro de Berlim, da Guerra do Golfo ou do atentado de 11 de setembro de 2001 às Twin Towers. Porque não quis ficar parada no tempo, não recusou a informatização dos seus palácios nem a criação de páginas nas redes sociais, que aproximaram a família real do homem comum. Não pôde evitar divórcios no seio da sua família nem casamentos claramente desiguais. Correspondendo ao que dela se esperava, nunca tomou posições políticas em público, mas não terá deixado de dar a sua opinião nas reuniões que manteve semanalmente com os primeiros-ministros.
Quanto a estes, sempre perceberam que a rainha – com o seu amor incondicional pela pátria – era um trunfo muito útil, não só como fator de unificação dos súbditos, mas também como a anfitriã perfeita de todo e qualquer tipo de receções e a melhor das representantes da essência britânica no estrangeiro. Afinal, num tempo em que a tradição já não é o que era, o aparato protocolar que desde há séculos rodeia os soberanos ingleses dá-lhes uma aura irresistível além-fronteiras. Desdobrando-se em viagens que a levaram um pouco por todo o mundo e recebendo nos imponentes salões dos seus palácios e castelos figuras de proa da política internacional, a rainha tem sido “a” embaixadora do seu país nestes 63 anos. A título de curiosidade, refira-se que conheceu pessoalmente 11 dos 12 presidentes dos EUA e quase todos os oito Papas que se sentaram no trono de S. Pedro.
A sobrecarregada agenda da monarca inclui, ainda, uma interminável lista de atos oficiais grandiosos – como a abertura do Parlamento ou várias paradas militares – e outros de muito menor grandeza (mil e uma inaugurações de exposições florais, competições caninas, feiras de gado ou concursos de bolos). A todos eles Isabel deve comparecer irrepreensivelmente vestida, calçada e penteada e, se possível, com um sorriso amável estampado no rosto. E também nisso tem sido sempre uma profissional de mérito e excelência, raramente esboçando um ar de tédio, de cansaço ou até de má disposição.
Casada desde 1947 com o seu primo, o príncipe Filipe da Grécia e Dinamarca (que aceitou, incansável, o papel secundário de consorte), Isabel II já tinha sido mãe de Carlos e Ana quando subiu ao trono, e já era rainha quando nasceram André e Eduardo. Num tempo em que as crianças das classes altas passavam boa parte do tempo entregues ao cuidado de nannies, a proximidade entre mães e filhos já era pouca. No caso de Isabel II, a sua imensa dedicação ao papel de rainha ainda agravou a situação. Talvez por isso, os filhos foram responsáveis por algumas das maiores dores de cabeça da soberana inglesa. Quando, em 1992, a princesa Ana se divorciou do seu primeiro marido, Mark Philips, já há muito se percebera que o casamento de Carlos com Diana Spencer não era um conto de fadas: a popular princesa de Gales não fazia o menor esforço por esconder a sua infelicidade em público e o caso extraconjugal do príncipe com Camilla Parker Bowles era um segredo de Polichinelo. A lavagem de roupa suja em público, com ambos a darem entrevistas em que assumiam as suas infidelidades, acabaria em divórcio, em 1996, o mesmo ano em que André e Sarah Ferguson puseram fim ao seu casamento. Se Isabel II considerou esse o seu annus horribilis era porque mal sonhava que um ano depois enfrentaria horas bem mais difíceis, com a morte de Diana. Transformada em mártir por uma morte precoce e trágica, Diana, que na verdade nunca se entrosara na família real, obrigou a rainha a fazer um discurso à nação, a decretar luto nacional e dar honras de semi-Estado ao funeral.
Nesses anos, o clima de tensão doméstica levou Isabel II a uma declaração inesperada: “Como todas as melhores famílias, nós também temos a nossa dose de excentricidades, de ímpetos, de jovens irreverentes e de desentendimentos familiares.” Depois disso, aos poucos, os Windsor foram entrando nos eixos. Hoje Carlos está finalmente – e oficialmente – sossegado ao lado de Camilla e William casou-se por amor com Kate Middleton, deu um herdeiro ao trono, George, e uma irmã para lhe fazer companhia, Charlotte.
Ser rainha tem proporcionado a Isabel II um estilo de vida em que riqueza, luxo e requinte são palavras de ordem. Tem-lhe permitido dedicar-se a todas as suas paixões, viajar por todo o mundo e conviver com as figuras mais destacadas da cena internacional. Mas exigiu-lhe em troca uma quase total abdicação de si própria e a permanente submissão a regras protocolares verdadeiramente tirânicas. Estoica como poucos, nunca ponderou abdicar, pois considera que a sua missão lhe foi dada por Deus. Era ainda princesa quando disse aos britânicos, no discurso televisivo que lhes fez no dia do seu 21.º aniversário: “Declaro perante vós que toda a minha vida, seja ela longa ou curta, será dedicada a servir-vos e a servir a nossa grande família imperial.”
O império, esse, há muito que se esfumou, mas que a longa vida da soberana tem sido dedicada de corpo e alma à sua missão e aos ingleses, disso ninguém duvida.
Rainha Isabel II celebra 63 anos de reinado
O recorde do reinado mais longo da monarquia britânica será alcançado esta quarta-feira, 9 de setembro, pelas 17h20, quando foram ultrapassados os 63 anos e 216 dias, pertencentes à sua trisavó, a rainha Victoria.
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