Edite Estrela mora a dois passos do Parlamento Europeu (PE), em Bruxelas, e até costuma fazer esse percurso a pé. Na manhã em que a visitámos, chovia e, por isso, a vice-presidente da Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros e membro da Comissão do Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar no Parlamento Europeu esperou pelo motorista. Acabou presa no trânsito caótico da cidade belga e foi em passo acelerado que a vimos entrar no parlamento. Diz ‘bom-dia’ e segue apressada para uma votação relacionada com o meio ambiente. Meia hora depois, encontra-se com a CARAS. Começa por mostrar os cantos à casa. Inúmeras salas, o hemiciclo… salta-nos à vista a lavandaria, o ginásio, cabeleireiro, bancos, cafés, supermercado, creche… Pelos corredores, enquanto se deixa fotografar, vai cumprimentando as dezenas de eurodeputados com quem se cruza. Fá-lo em várias línguas. Depois, prescinde de almoçar para marcar presença num encontro com algumas mulheres do Irão, que foram pedir ajuda às mulheres europeias para conseguir mais liberdade. Fica com elas meia hora, pois à tarde vai ser relatora da Directiva Licença de Maternidade. Está expectante e ansiosa. Antes disso, fala para a
Euronews e
RTBF, ao mesmo tempo que alguns pais com filhos se juntam numa manifestação de apoio às propostas da deputada socialista destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde das trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes no trabalho. Segue-se a votação. Corre bem. Edite Estrela saboreia mais uma vitória. De seguida, a presidente da Delegação dos Socialistas Portugueses no PE dirige-se para o seu gabinete, onde a esperam os assessores
Marta Vieira e
Milton Nunes. Uma televisão, uma
chaise longue, um sofá e algumas plantas decoram a sala. Sobressaem as fotos das filhas,
Patrícia, de 34 anos, e
Filipa, de 33, as dos três netos,
Diogo Maria, de seis anos,
Francisco, de cinco, e
Vicente Maria, de quatro, e a do marido, o deputado
Rui Vieira. A eurodeputada come um iogurte e troca de roupa. Já mais confortável e informal, concede-nos uma hora de entrevista, da qual só conseguimos reproduzir aqui uma pequena parte.

– Parece que a ideia que se tem de que os deputados europeus têm muito tempo livre e trabalham pouco não é verdade…
Edite Estrela – [risos] Não é mesmo verdade. Como em todo o lado, haverá cá pessoas que trabalham pouco, mas se quiserem cumprir o seu dever e corresponder às diferentes solicitações, este é um trabalho muito absorvente, que exige inclusivamente uma grande preparação técnica.
– Estava preparada para corresponder a essa exigência?
– Na minha idade, e com o percurso que tenho, tento estar preparada para tudo, porque a vida política em Portugal também é muito exigente. Não se tem horário, porque as solicitações aparecem ao fim-de-semana, à noite e feriados, e tem de haver grande disponibilidade. Para quem, como eu, foi presidente de câmara com a dimensão da de Sintra e tendo feito o trabalho, passe a imodéstia, que é visível, estou habituada. Nesse tempo, praticamente esqueci os amigos, a família e até de mim. Foi uma dedicação total.
– Nunca se arrependeu disso? Não terá perdido coisas importantes da vida das suas filhas?
– Procurei sempre ser uma mãe presente nos momentos importantes. Acho que elas não podem dizer que naquele momento muito importante para as suas vidas estive ausente. Agora, é evidente que não era uma mãe tão presente como outras, disso tenho consciência. Mas costumo dizer que as mulheres têm direito à realização profissional sem sentimento de culpa.
– Elas cobraram-lhe essa ausência?
– Acho que elas foram e têm sido bastante compreensivas e num momento ou outro é evidente que cobraram, mas em situações em que queriam que eu fosse sair com elas ou as acompanhasse numa ida às compras…
– Que idade tinha quando entrou para a vida política?
– Tinha 30 anos quando entrei para a política activa. Por ser um pouco rebelde e contestatária, tinha a ideia de que nos partidos havia o pensamento único, em que as pessoas não tinham liberdade para discordar e se exprimir, portanto, demorei algum tempo para entrar num partido político…
– Receava que a calassem?
– Não, pensando que provavelmente não me aguentaria lá muito tempo, portanto, não valia a pena fazer a experiência. Mas encontrei no PS uma grande liberdade de intervenção, de expressão e de acção. Devo dizer que aqui, no Parlamento Europeu, como chefe da delegação socialista, sou a que consulta menos a direcção do partido para tomar decisões ou iniciativas. Tenho uma liberdade total e vejo que isso não se passa com alguns colegas meus. Nunca me senti condicionada, tenho o sentido de responsabilidade e tem de haver bom senso.
– Já tinha alguém na família nos meandros da política?
– Fui pioneira no sentido de aderir a um partido de esquerda, porque a minha família era conservadora, portanto, não viram isso com bons olhos, mas foram-se habituando e até evoluindo, tanto que a partir de certa altura o meu pai, que era muito conservador, começou a votar no PS. A minha mãe, que sempre foi mais receptiva às novas ideias, também foi aderindo e acompanhando e, apesar de ser muito religiosa, pôs de lado os preconceitos e fez um raciocínio mais racional e actual, e votou sempre a favor do sim nos referendos sobre a interrupção voluntária da gravidez.

– Deve ter tido uma educação muito rigorosa…
– Tive uma educação muito espartana e rigorosa do ponto de vista até do próprio usufruto da minha liberdade.
– Na adolescência era privada de sair à noite, pisava o risco?
– Era rebelde, mas tinha grandes limitações. Às vezes desobedecia, mas sem correr riscos. Naquele tempo, logo a seguir à quarta classe, quem queria prosseguir os estudos tinha de ir para uma grande cidade. Fiz o liceu no Porto e a faculdade em Lisboa, por isso, acabei por, mesmo com regras impostas, libertar-me mais um pouco. Depois, havia alguma cumplicidade com a minha mãe no sentido de ela avaliar o que era aceitável, portanto, às vezes, servia de ‘chapéu-de-chuva’ em relação ao meu pai, que era mais rígido. Admiro-a imenso, é muito inteligente, muito lúcida e ainda hoje é uma grande conselheira…
– Era boa aluna?
– Sim. Claro que houve um ou outro período em que o rendimento foi menor, quando começaram os namoricos e quando comecei a descobrir o mundo… Mas nunca soube o que era uma reprovação, nem sequer a uma disciplina. Sempre tive médias de 14 ou 15 valores, o que dava aos meus pais uma grande confiança.
– E apresentava os seus namorados aos seus pais?
– Quando tive um namoro mais sério, apresentei-o, e eles aceitaram… O meu pai responsabilizava-me pelas minhas escolhas e pelo meu comportamento.
– Casou-se cedo?
– Para os padrões da época, não era cedo. Tinha 23 anos. Tinha terminado o curso e já dava aulas quando me casei.
– O casamento foi uma forma de se libertar?
– Havia quem encarasse o casamento dessa forma, mas não foi o meu caso.
– O seu divórcio deve ter sido um drama para a sua família…
– Não foi fácil…
– Mas voltou a casar-se…
– Sim, e estou casada há 20 anos. Nós pertencemos a uma outra geração, e claro que a experiência que se adquire num primeiro casamento nos faz valorizar o que realmente é mais importante, e com a idade também se adquire uma maior compreensão e se cultiva mais o respeito pelo outro. É este o meu entendimento.
– Há um maior investimento num segundo casamento?
– Sem dúvida. Não há casamentos perfeitos, não há ninguém perfeito, aquele herói. Isso é um mito que não tem tradução na realidade. A felicidade também se constrói e temos de dar o nosso contributo, ou seja, ninguém nos vai servir de bandeja o nosso bem-estar, equilíbrio, temos de ser nós a procurar tudo isso. E ir alimentando a relação sem nos instalarmos nela.
– Acha que foi isso que aconteceu no primeiro casamento?
– Não sei, as pessoas também são diferentes.
– Teve que ver, então, com a indisponibilidade…
– É muito difícil para um homem da minha geração aceitar que a mulher tenha reuniões à noite ou compromissos ao fim-de-semana e que se movimente num ambiente predominantemente masculino. Se recuarmos 20 anos, percebemos que não era fácil. Eu compreendo que é preciso serem pessoas muito especiais e, principalmente, devem ser do meio, para entenderem melhor…
– Quer dizer que o seu marido aceita bem esta sua ausência?
– Ele também é da política. Quando nos conhecemos, éramos os dois deputados. Respeitamos o espaço um do outro e compreendemos as solicitações que a vida política exige.
– Passa-se a dar mais valor ao tempo que estão juntos?
– Se houver compreensão e se isso não gerar conflitualidade, acho que sim, que valorizamos todo o tempo que estamos juntos. Connosco tem funcionado.

– Como é que colmata as saudades da família? Passa aqui grande parte da semana…
– De quem eu sinto mais saudades e de quem é mais difícil separar-me é dos meus netos. Faço um grande esforço para estar muito presente na vida deles, para ir acompanhando o seu crescimento. Valorizo muito a sua evolução e para mim é um deslumbramento ver como aprendem, o quão criativos são…
– Vive num apartamento mobilado por si ou deixou que alguém cuidasse disso?
– Fui eu que escolhi. Esta é a minha segunda casa. Mudei-me por razões de proximidade com o parlamento. De tal maneira que quando está bom tempo venho a pé. Faço exercício…
– Fora aquele que já faz nesta imensidão de corredores. Quantos quilómetros fará por dia?
– [risos] Não sei, mas fazem-se bastantes nas deslocações de umas salas para as outras… e eu passo em média 12 horas por dia no parlamento.
– Onde é que ficam os prazeres pessoais?
– Gostava de acompanhar mais a actividade cultural em Bruxelas… Quando vim, pensei que a partir das seis da tarde poderia ir a espectáculos, ao cinema, ao teatro, mas não. Para isso tenho de fazer um grande esforço, impor uma certa disciplina e obrigar-me a pôr o trabalho de lado para satisfazer esses meus desejos…
– Mas é também essa dedicação ao trabalho que a faz saborear vitórias. Hoje, por exemplo, viveu um desses momentos ao ver aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros o relatório sobre a Directiva Licença de Maternidade.
– Esta foi uma vitória difícil e, por isso, mais gratificante. Não tendo o apoio do maior grupo político, o PPE – embora do PPE tenha recebido alguns votos a favor e algumas abstenções -, a votação final foi favorável. O resultado era imprevisível, por isso eu estava ansiosa. Agora estou muito feliz e mais descontraída. A seguir a esta sessão, o relatório vai ser votado no plenário. Para mim, como deputada, se isto correr bem, é algo que marca um mandato e são raros os deputados que têm o privilégio de poder ser relatores de uma directiva.
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