Mulher de obras de grandes dimensões, diz que não pensa nelas à medida em que depois nós as vemos. Isso da escala é trabalho do marido, arquiteto,
"parceiro" de um trabalho que já é reconhecido por esse mundo fora.
Joana Vasconcelos, filha da democracia, como gosta de se afirmar, em oposição às filhas da ditadura, é uma defensora dos direitos das mulheres, uma agente da reciclagem de ideias e tradições e, acima de tudo, uma portuguesa que se orgulha de ter feito tudo a partir do nosso país, de dentro para fora. Uma conversa apaixonante, tida ao lado de um projeto que vai dar uma segunda oportunidade de vida ao seu velho primeiro carro.
Diana de Cadaval – É feminista? Acha que a sua obra tem uma mensagem feminista?
Joana Vasconcelos – O feminismo interessa-me na perspetiva dos direitos humanos, ou seja, enquanto houver mulheres que são tratadas como seres de segunda, a ganhar menos do que os homens e a não ter os mesmos direitos. Não sou feminista por uma questão de quotas nem de representatividades, mas pelos verdadeiros direitos humanos das mulheres, pela igualdade. Sou pelos direitos humanos, se isso faz de mim feminista, então sou-o.
– Quase todas as suas obras têm mensagens sobre o universo exclusivo da mulher… O seu famoso sapato, o seu lustre, etc… Porquê?
– São assuntos que, de alguma maneira, falam do mundo através de uma perspetiva de uma mulher portuguesa e… lisboeta. Não sou um homem, não sou africana, não sou alemã… Sou uma mulher e sou portuguesa, e isso condiciona a forma como olho para as coisas e como vejo o mundo. Olho para o mundo daqui, mas as viagens, o conhecimento das pessoas e o facto de expor fora do meu país dão-me uma visão diferente de Portugal daquela que teria se nunca tivesse saído do País.
– O artesanato português, sobretudo o croché, que já não se via muito, nem se utilizava tanto como antigamente, é exemplo de como a sua arte utiliza de uma forma muito expressiva valores da nossa cultura nacional…
– O croché é utilizado no mundo inteiro. A diferença é que os países do centro da Europa já se esqueceram dessas coisas há mais tempo do que Portugal. O facto de Portugal ter estado fechado quase 50 anos numa ditadura fez com que também se congelasse uma série de referências culturais que na Europa mais desenvolvida e, sobretudo, na Europa Central desapareceram. As técnicas manuais em Portugal preservaram-se até agora porque na ditadura as mulheres ficavam fechadas no ambiente da casa. Ficaram fechadas na família muito mais tempo do que noutros países! Portanto, estas tradições ainda existem em Portugal, ainda fazem parte da nossa realidade, com muito mais força do que noutros países onde foram abandonadas há mais tempo. Muitas vezes, o querer avançar sem olhar como faz com que se percam raízes e tradições que às vezes era importante que se preservassem.
– Quando iniciou a sua carreira, há 15 anos, alguma vez imaginou que o seu trabalho iria alcançar tais proporções e de uma forma tão rápida?
– Não. Quando o artista faz a sua obra não tem ideia das consequências nem da forma como ela vai ser reconhecida. As minhas peças foram afinadas, são projetos que foram crescendo, que tiveram o seu impacto na sociedade ao longo dos tempos. Esse impacto vai mudando com o tempo, algumas caem no esquecimento. Nós não prevemos quanto vão custar as minhas peças daqui a dez anos, nem o reconhecimento que vão ter!
– Uma dessas obras foi a leilão na famosa casa Christie’s, a par de obras dos grandes artistas do momento. O que é que isso significa para si?
– Desconhecia esse universo dos leilões. Foi uma descoberta muito agradável. Eu já existia nas galerias e nos museus, mas ainda não tinha passado para os leilões. Pensava que era uma amálgama de objetos para vender e não me tinha apercebido da importância do evento… Participei no
Evening Auction da Christie’s, que é uma instituição muito séria. A escolha das obras é feita por um comissário, e esse comissário organiza a exposição. E o jogo entre as obras tem que ser perfeito. Não pode haver uma peça que fique mal, porque estraga o conjunto. E quando percebi que ia ser exposta com o
Damian Hirst, o
Jeff Koons e o
Gerhard Richter pensei que nunca tinha exposto as minhas obras ao lado de nomes tão grandes. Já tinha estado em exposições com alguns grandes nomes, mas não dessa quantidade e qualidade.
– Eu própria, que trabalhei na Christie’s, fico surpreendida com o valor que a sua peça alcançou…
– Acho que as pessoas que puseram a peça a leilão sabiam que era um bom investimento, mas não estavam assim tão certos que a coisa fosse funcionar.
– A revista francesa
Point de Vue descreveu a Joana como
"artista de alma lusa". Concorda?
– Claro que sim, concordo!
– Sente-se, então, uma embaixatriz do nosso país?
– Sinto, claro. Eu faço imenso trabalho como embaixatriz. Sou uma artista que nunca abandonou o seu país. Nunca fui viver para outro lugar, nunca estudei fora, por isso, se sou alguma coisa, é daqui, de Portugal. Por outro lado, tento viajar o mais possível e exportar o mais possível a minha obra.
– A Joana deve ter uma boa equipa à sua volta…
– Sim, realmente tenho uma muito boa equipa.
– E o seu marido, qual é o papel dele na sua obra? Partilha a inspiração com ele em primeiro lugar, antes da realização de cada peça?
– O meu marido é fundamental e indispensável, devido aos seus conhecimentos de arquitetura e ao gosto que tem pelas artes. Mais do que um companheiro, ele é um parceiro de trabalho. Não me seria possível fazer esta obra sem ele. Porque eu não tenho conhecimentos de arquitetura e a minha forma de pensar está muito ligada à escultura. As minhas peças não têm medidas. Eu parto de um conceito irreal para uma realidade. Essa construção da realidade tem que ter estruturas, escalas, pelo que passa pelo meu marido em primeiro lugar. E depois temos engenheiros, técnicos e especialistas que vão analisar o projeto para ser possível construí-lo.
– Sempre quis ser artista?
– Não, de todo. É um processo que uma pessoa vai encontrando. Fui procurando e fui encontrando…
– Como reagiu a sua família? Teve o seu apoio?
– O meu avô dizia que
"se levava muitas gerações numa família até se conseguir ter um artista". Eu fiquei sempre a pensar nessa frase. A minha avó era pintora, a minha bisavó era professora de piano, etc… Há várias pessoas com jeito para as artes na minha família, que teve sempre personagens muito fortes, que sempre acreditaram naquilo que faziam, e o culto da pesquisa pessoal, do acreditar nas capacidades individuais, faz parte de várias gerações da minha família.
– Pode revelar-nos alguns dos seus projetos futuros?
– Como viram aqui hoje, temos o
Carro a Pilhas, que é a próxima peça a ser concluída. É uma peça que parte da ideia da reciclagem de pilhas usadas feita nas escolas. É um projeto do Modelo, que incentiva a reciclagem das pilhas usadas junto das crianças e jovens em troca de livros. Portanto, incentiva a reciclagem e a leitura. Eu quis participar neste projeto fazendo o
Carro a Pilhas, que é a transformação do meu primeiro carro num carro tipo super-herói, que vai às escolas incentivar a reciclagem das pilhas em troca de livros, que fala das energias positivas e das energias negativas. Como uma energia negativa – uma pilha usada, por exemplo – pode dar origem a uma energia positiva, a leitura. Este jogo pareceu-me muito interessante. O meu
Carro a Pilhas também tem esse contraste entre o exterior e o interior, entre a proteção do lar e a violência da rua. O carro vai ser apresentado nas escolas que reciclaram o maior número de pilhas no País. Esta campanha é muito interessante, porque recicla mais de 20% das pilhas no País inteiro, só junto das escolas. Já vai na sua sétima edição e é impressionante a quantidade que consegue reciclar só com esta ação junto das crianças.
– Através das suas obras também recicla objetos que estão em fim de vida e que, através da sua arte, voltam a ter uma segunda vida?
– A reciclagem não tem que ser só com materiais, tem que se reciclar ideias, conceitos, tradições, costumes, a família. Toda essa reciclagem não é só pegar em coisas velhas e dar-lhes uma outra vida. É, sobretudo, preciso reciclar ideias. Este projeto pareceu-me muito próximo do que eu tento fazer, que é reciclar ideias, reciclar materiais, transformar o passado. Eu reciclei o meu primeiro carro, que estava guardado numa garagem onde ninguém ia pegar nele. Também ele vai ter uma segunda vida…
*Este texto foi escrito nos termos do novo acordo ortográfico.