É uma voz que nasce destinada, um magnetismo que extra-vasa. Canta? Sim, mas é mais do que isso. Já resplandecia, em criança, uma luz que indicava. Sobravam-lhe uma rebelião, um fogo, uma energia que, mesmo sem idade, se impunham. E já a voz, reclamando, cantava. Um dia, tendo ela sete, disse eu à mãe:
"Cuidado com esta tua filha…" Cresceu e viu-se: a mesma aura, a mesma sobranceria face ao ruído do mundo. E nem vamos falar do colosso que é, como mulher, nem da beleza que a fadou, assim como à mãe e às irmãs. Chegou a hora, dizem-nos, e acreditamos. Era o passo difícil que faltava para confirmar a profecia. Quando canta, só ela canta, quando está, só ela está: chama-se carisma.Seu nome completo é
Teresa da Costa Campos Lopes Alves, tem 30 anos, é mãe de
Manuel, seis anos, e sofreu a perda brutal do pai há dois anos, num acidente de barco. Estudou pintura, conservação e restauro, foi
account numa agência – pasme-se – e é hoje fadista residente no Clube do Fado, embora cante também música ligeira, MPB e
jazz vocal clássico. Resistiu até hoje ao assobio da exposição pública. É artista até à raiz dos seus cabelos de índia, nasceu com o que, em gíria artística, se chama ‘palco’, e, este mês, lança o seu primeiro disco dedicado ao pai:
Reflexo. Se não for a ‘Revelação do Ano’ num qualquer certame, confirma-se: Portugal merece o êxodo das suas estrelas. Recebeu-nos em casa, às Janelas Verdes, e toda a sessão de fotos partilhada com as irmãs foi uma explosão de graça, riso, beleza, feminilidade e irreverência, suficiente para fascinar quem assistisse. Privilegiado, o fotógrafo
Mário Galiano, ele próprio uma estrela, a única testemunha masculina. Veremos como a cantora se sai, numa primeira entrevista…
Rita Ferro – Teresa, lembras-te do mo-mento em que disseste a ti mesma
"é isto que quero fazer, daqui não arredo pé"?
Teresa Lopes Alves – Lembro-me tão claramente como se tivesse acontecido há 2 anos, 1 mês e 16 dias.
– Tens 30 anos e uma vocação há muito definida. Porquê só agora?
– Porquê antes?
– Escusava de ouvir essa…
– Não, Rita! É que o que estou a tentar fazer é tão sério e genuíno que me expõe de uma forma que só podia ser bem recebida estando eu numa fase de vida mais adulta. Não foi um fenómeno de parapsicologia ou clarividência, mas quase, um dia acordei e senti que estava preparada.
– Sabes o que se sente em ti, ao mesmo tempo? Uma luta interna. Como se adiasses inconscientemente a exposição pública, sabendo que conciliar um presumível estrelato com essa tua natureza indomável te assusta. É possível?
– É possível e real! Tenho algumas teorias sobre isso. [gargalhadas] A verdade é que sonho em salvar o mundo, mas fui educada em moldes de excelência que, ao mesmo tempo, me inibem. Pode ser que tenha medo da responsabilidade de existir para mais pessoas do que as que já me rodeiam…
– A tua liberdade é irredutível, para desgraça de quem te rodeia. Correrás o risco de ser uma Cesária – calma – neste aspecto concreto, ou seja, alguém a quem nem compromissos nem protocolos impedem de fazer o que quer e quando quer?
– Ave, Cesária! Só faço o que sinto e é essa a minha cruz.
– Estudaste ou estudas canto?
– No passado, com a cantora e professora
Joana Levi. De 1999 até hoje, ou desde que comecei o curso de música na Escola de Jazz Luís Villas-Boas, com a cantora, professora e amiga do coração
Paula Oliveira.
– E agora este disco, a que chamaste
Reflexo. É a tua cara?
– Espero ter uma cara menos séria, [risos] mas é sem dúvida o reflexo de uma alma atormentada por um desgosto homérico. É um reflexo condicionado por um acontecimento, mas reflecte fielmente o que sou e como estou musicalmente no presente momento. Como irei estar daqui a uns tempos… logo se verá.
– Quem interpretas e o quê?
– Interpreto uma jovem que perde a pedra basilar da sua vida numa tempestade, fruto da ira de Neptuno. Canto o mar de
Vinícius de Moraes, os heróis subaquáticos do
João Monge, as amarguras escritas pela nossa
Amália e vividas por tantos de nós, os desencantos da descoberta da morte, do
Rodrigo Serrão, a doçura do
Pedro Pinhal e a perspicácia de
Ricardo Cruz, a elegância de
José Ibérico Nogueira, a genialidade de
Rui Veloso, e… continuo?
– Não, gosto de surpresas. Um dia ouvi-te dizer
"é tão difícil não cantar como a Amália", e isso impressionou-me. Não vos deixou o caminho fácil, é isso?
– A Amália é uma referência nacional maravilhosa, faz-me chorar de alegria e orgulho, mas o fado ao povo pertence e é tão bem cantado por outras vozes, anteriores e posteriores, que estranho o modo como é possível cristalizar-se um único modelo num país tão pródigo em vozes como o nosso.
– Percebo, mas os ícones secam os eucaliptos à volta, em termos de sucessão. Cabe-vos florir! Outro aspecto: sei que já cantaste em Madrid, Paris e até Monte Carlo – mas que te é mais difícil cantar aqui. Queres falar disso?
– Nós, portugueses, somos melhores a conquistar o mundo do que a conquistar-nos. [risos] Se bem que, actualmente, nos encontremos todos meios adormecidos…
– Da minha geração sei alguma coisa, da tua nem tanto. Consegues explicar-me as razões desse sono aos trinta anos?
– Não falava da minha geração, mas da vossa! [risos] Os valores que temos parecem calados, adiados, renunciantes… Por cá, divido as pessoas em três grupos: as que sobrevivem desgostosamente e que, no trânsito, descarregam sobre os outros as suas amarguras e frustrações; as que gritam do fundo do poço e conseguem mesmo assim atrair os ouvidos sensíveis – raríssimos; e os que pretendem dominar esta nação frágil e agónica, muitos deles complexados e sem escrúpulos, e a quem tudo, mas mesmo tudo, é permitido…
– … menos o reconforto da paz interior, diria eu. Outra coisa: pode dizer-se que és boémia ou ofendes-te? É que os boémios deveriam ser patrocinados pelo Ministério da Cultura… [risos] Já viste bem esta tendência assustadora para que até os artistas se equilibrem e aburguesem, contrariando os excessos,
"trabalhando a auto-estima", [risos] vigiando o colesterol, evitando os hidratos de carbono depois das 18h?
– Sou completamente boémia, Rita, mas tive, como disse, uma educação especial. Sinto uma trela invisível, presa nem sei onde, que me trava por esticão e me leva ao tapete.
– A tua família leva-te a sério?
– Por que será que me tornei artista?
– E o amor, Teresa?
– A perda de um amor incondicional é hoje o alimento da minha musa. Só sei falar de amores incondicionais, porque sou Mãe…
– Concordo contigo: ou esses ou nenhuns…
– Tenho tudo para ser feliz, mas acontece que estou triste.
– Calma, deixa sair o disco, coração ao alto! A propósito de tristeza: que figura nacional canta bem mas não te alegra?
– Rita: não há quem cante bem e não me alegre!
– Chegámos ao fim e falei mais do que tu, é um
kamikaze jornalístico…
– Não, é assim mesmo: tu escreves, eu canto.
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.