Começou como argumentista. Depois de várias curtas, assinou a primeira longa-metragem em 2011 com Quinze Pontos na Alma. Em 2012, teve estreia a sua segunda longa-metragem, Florbela. Ainda baseada na vida de Florbela Espanca, realizou uma mini-série de três episódios para a RTP. Na sequência do êxito, publica agora Florbela, Apeles e Eu, um livro em que ficciona, com inquietante verosimilhança, o que falta saber sobre a poetisa alentejana. Senhor de um porte czarino, é excepcionalmente alto, magnético, carismático. Trata-se do cineasta Vicente Alves do Ó, de 42 anos, nascido em Setúbal, com quem passeámos na Quinta da Regaleira, em Sintra.
– Como te cruzaste com Florbela?
– Tinha 14… 15 anos e queria ser poeta. Lia todos os autores que encontrava na Biblioteca Municipal de Sines (onde cresci). Apaixonei-me pela Sophia, pelo Pessoa,
pelo Ruy Belo e por Florbela. E ela era o Alentejo inteiro e a sua solidão. Acho que essa ligação de sangue a colocava num sítio muito especial e isso ficou comigo.
– Que namoro foi esse?
– Foi uma espécie de relação intensa e filial, entre dois filhos duma terra, duma condição. Dois alentejanos à procura do mundo como casa.
– Tem-se a ideia de que foi uma mulher terrivelmente infeliz.
– Acho que a tristeza da Florbela era apenas uma porta aberta para a verdade. Ela não tinha essa necessidade óbvia de se esconder atrás duma existência superior que habitualmente atribuímos aos poetas. Ela vivia a verdade à flor da pele.
– Na época, foi muito criticada. Quem quis ignorá-la e não conseguiu?
– Foi criticada porque era mulher, porque era provinciana, porque vivia o que dizia e descrevia o que vivia e essa realidade carnal e emocional não era de bom tom em sociedade.
– Que faltou a Florbela?
– Tempo e mundo. Deveria ter sobrevivido às suas dores – que nunca ultrapassou –, deveria ter saído de Portugal para ver o mundo e sentir o mundo.
– Que lhe sobrou?
– Viveu com a intensidade de um cometa e extinguiu-se aos 36 anos. Como tantas outras mulheres. A Marilyn Monroe, a Simone Weil, a Maria Callas, todas mulheres cujo corpo era pequeno para a sua grandeza.
– Eras argumentista, e dos bons. Como foi a transição para realizador?
– Foi o passo que faltava para me aproximar ainda mais do que queria ser. Acho que o cinema é uma espécie de janela onde posso colocar todas as minhas obsessões. Os meus olhos estão sempre a realizar.
– E a passagem a escritor?
– Tenho uma paixão tremenda por contar histórias. Pelo dom da palavra. Pela construção poética do mundo. Mesmo que um dia deixe de realizar, a escrita andará sempre comigo.
– A literatura é mais difícil do que o cinema, em termos de labor?
– A literatura é mais solitária e nesse sentido é mais difícil. O cinema exige gente, muita gente, muitas opiniões e a fragilidade das nossas ideias é maior e mais perigosa.
– Pode dizer-se que este teu novo livro, outra vez baseado em Florbela, completa o filme?
– Vivi quatro anos com ela. Intensamente. E ficou tanta coisa no papel, na cabeça. O cinema não me possibilitava dizer e mostrar tudo. Escrevi o livro porque precisava de dizer mais e mostrar ainda mais.
– O que dizes a alguém que já saiba tudo sobre ela?
– Não digo nada. Aliás, é curioso que, na altura do filme, tanta gente soubesse tanto sobre ela. Aliás, entre o choque e o espanto, lá fui ouvindo gente e coisas que me deixavam estarrecido. É um dos nossos maiores defeitos. Essa veleidade no julgamento sumário dos outros.
– Que realizador estrangeiro faz o que gostarias de poder fazer? Porquê?
– Hoje em dia, admiro alguns filmes e poucos realizadores. Acho que se perderam essas individualidades extremamente cultas que se interessavam pelo mundo e tinham coisas para dizer. Hoje, o realizador diz que não quer ser visionário de nada. Quer apenas “filmar a realidade”. Como se a realidade fosse um coisa exacta.
– Como vai o cinema português?
– Vive-se numa espécie de gaiola dourada, mas sinto que este sistema é tão frágil que pode acontecer o que aconteceu há dois anos com a extinção dos apoios. É preciso que o cinema seja independente dos governos, das políticas de gosto e dos lobbies. Basta ver a relação das pessoas com a música, a literatura e o cinema. Mais depressa dão 15 ou 20 euros por um espectáculo de teatro, ou música ou compram um livro, que dão 6 euros para ir ver um filme português.
– Dantes, apresentava dificuldades na qualidade final. O som, por exemplo. Que dificuldades subsistem?
– Acho que a mais grave continua a ser a nível do argumento. É curioso. Somos um povo de palavras mas quando chega à tarefa de torná-las vivas e colocá-las na boca de alguém, somos tímidos e desleixados.
– A angariação de subsídios está pior ou melhor do que já foi?
– Acho que está pior no sentido em que se mantém. E digo pior porque o mundo avança e nós vamos ficando para trás, cheios de medos e preconceitos. Em guerra uns com os outros.
– Que projectos te esperam? Já têm nome?
– Quero realizar um filme sobre o poeta Al Berto. Quero falar neste homem, que num período tão marcante em Portugal (1974 – 1977), ousou sonhar numa pequena vila alentejana (Sines).
– Que opinião tens de Portugal?
– É uma terra abençoada, cheia de vida, de cheiros, de música, de amor. É uma paisagem perfeita e com tanto potencial. Parece mesmo um jardim, como dizia o poeta.
– E dos portugueses?
– O problema de Portugal são os portugueses e este peso enorme que carregam nos ombros, duma história, dum passado, duma exigência que os frustra todos os dias. Desta constante comparação com o mundo, desta necessidade de validação exterior. Não somos ainda um povo livre e a classe política aproveita-se desta ‘patologia’ e mantém esta gente debaixo dum véu de chumbo, fadista e beato. Um dia que este povo acredite na liberdade, será tão grande como os poemas que escreveu.
Vicente Alves do Ó: “Os meus olhos estão sempre a realizar”
Rita Ferro conversou com o cineasta no cenário mágico da Quinta da Regaleira, em Sintra. A passagem do cinema para a escrita, com o livro “Florbela, Apeles e Eu”, sobre Florbela Espanca, foi o pretexto deste encontro.