Margarida Mercês de Mello, cujo rosto e voz todo o português reconhece e acarinha, nasce em Luanda, ingressa na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, casa-se com David Ferreira, têm quatro filhos: Teresa, 30 anos, Margarida, 29, David, 25, e Tomás, 22. Tem dois netos: Vicente, três anos, e Teresa, um mês. Em Março chegará a terceira neta, que já tem nome: Francisca. Desde que, em 1978, entra para a RTP, juntamente com Manuela Moura Guedes, Helena Ramos, Isabel Bahia, Fátima Medina e Fernanda Bizarro, apresenta programas de TV e rádio, faz entrevistas e locução de continuidade, colabora na imprensa, trabalha em documentários importantes. É uma longa carreira ao serviço da informação, do entretenimento, da ciência, da cultura. Hoje, pensa documentários e recebe convidados todas as quartas-feiras na RTP Memória. Uma vez por semana, faz voluntariado no Serviço de Leitura para Deficientes Visuais da Biblioteca Nacional. Conversou connosco no Hotel da Lapa, num dia frio, mas com sol.
– Quando, em 1978, ingressou na RTP, já obedecia a uma vocação?
Margarida M. de Mello – Sim. Em Luanda, na minha infância, não havia televisão, mas eu gostava de falar ao espelho. Na adolescência, inventava programas de rádio. No fundo, quando abriu o concurso para locutores, apesar de já estar a dar aulas, não pude resistir ao apelo.
– Sabe dizer o melhor e o pior de se trabalhar para uma televisão?
– Trabalho temas muito diversos, não paro de aprender e adquiri uma cultura diversificada. Tenho conhecido gente interessantíssima, de quem acabei por ficar amiga. E há ainda o desafio criativo. Uma vez, num espectáculo por Timor Lorosae, na Alameda da Universidade, estava uma multidão e falei logo a seguir ao reitor e a um político. Era suposto dizer qualquer coisa que animasse o público e suscitasse uma palavra de ordem antes de passar ao cantor. Mas depois das intervenções anteriores, tão fortes, eu não sabia o que fazer. E queria que fosse algo com sentido para a maioria das pessoas, cá e lá. Por fim, ocorreu-me uma ideia: na TSF, costumavam passar um trailer em que, entre outras coisas como tiros e gritos, se ouvia alguém a rezar. Então sugeri que, quem quisesse, rezasse comigo uma Avé Maria. Ainda hoje me arrepio… Houve até uma deputada do PCP que foi dizer à Inês Mota a pena de não ter fé e não se poder juntar àquele mar de vozes. Atrai-me também o nosso valioso arquivo e trabalhar no serviço público. Por isso, nunca saí. A única vez que estive quase foi quando a Sofia Carvalho e o Francisco Penim me convidaram para ir começar a SIC Mulher. O pior… pelo menos na realidade que conheço, se se quer fazer alguma coisa diferente, o mais provável é um não. Há uns anos, eu, que tenho nacionalidade portuguesa e angolana, quis fazer uma série de programas (com interesse turístico, cultural, económico) sobre Angola e não consegui… Acaba por ser desgastante. Mas vou insistindo e assim fiz o documentário Azul Alvim, premiado no FESTin 2014. No fundo, sou adepta do Séneca quando diz que não é porque as coisas são difíceis que não ousamos fazê-las, é porque não ousamos que elas se tornam difíceis.
– A forma de trabalhar, o próprio relacionamento entre chefes e colegas, os novos procedimentos, mudaram a sua forma de trabalhar de uma forma significativa?
– Sim. É normal, não? Na área da comunicação, em que as tecnologias se reinventam tão veloz e vorazmente e em que a competição é tamanha, ou evoluímos ou estamos perdidos. A crise acabou por nos empurrar para uma certa polivalência. Mas eu gosto de estar por detrás de tudo aquilo em que me meto.
– O que mudou, para o bem e para o mal?
– Entrei para a RTP na época em que se acabou com os “locutores papagaio”. Éramos responsáveis pelo que dizíamos e como dizíamos. Nalguns programas Ela por Elas e Maria, Maria, Maria, onde colaboraram a Maria João Avillez e a Teresa de Sousa, cheguei a ir (clandestinamente!) consultar a documentação do Expresso. Orgulho-me de ter abordado de forma regular, pela primeira vez em Portugal, o planeamento familiar e a sexologia.
– Experimentou muitas áreas, em qual se sente mais à vontade?
– A entrevistar. E neste momento é o que faço na RTP Memória. Não tenho jeito nenhum é para ser eu a entrevistada! Também me dá prazer certas locuções off, como as que fiz sobre Mandela (estava ainda vivo, mas era já para depois da morte) e Ella Fitzgerald. Chorava que nem uma Madalena à medida que ia lendo. Os espectadores nem se apercebem do que nos acontece nos bastidores… E tem graça que, de costas, já houve pessoas que me reconheceram pela voz.
– Vê muita televisão? Que tipo de programas prefere?
– Biografias, magazines, culinária, música, filmes. E noticiários, mas actualmente vejo mais por obrigação, para saber em que mundo vivo. Amargura-me quase tudo. Acho que perdemos todos uma certa candura e que o mundo está a precisar duma volta, que talvez possa ser desencadeada pelo Papa Francisco.
– O mundo evoluiu e, em muitos aspectos, libertou as mulheres. A ideia que se tem é que a maioria, trabalhando
nos média, ainda depende da imagem. Sente essa pressão?
– A televisão é imagem, e a imagem deve ser interessante. Tem de haver sedução para convocar o espectador. No entanto, entre nós, há duas formas de tirania: os homens podem ser obesos, enquanto as mulheres (mesmo inteligentes e boas comunicadoras) não. A outra tirania que afecta igualmente as mulheres (sobretudo nos canais generalistas) é a idade, ao contrário do que se passa noutros países.
– Que programas ou documentários lhe deram mais prazer?
– Programas, de longe Os Dias Úteis em meados dos anos 90. Liderava frequentemente audiências, tratava de todos os temas, sempre de uma forma credível e positiva. Houve pessoas que fizeram lá as pazes ao fim de 30 anos, como a Vera Lagoa e o Artur Ramos, desavindos desde o 25 de Abril. Aliás, uma das apostas era trazer ao debate gente com diferentes maneiras de pensar e estar. No fundo, eu também sou assim, mesmo cá fora. Uma vez, juntei o Rúben de Carvalho e o Nuno Rogeiro. Divergentes nas visões políticas, mas muito cúmplices no gosto pela música folk. Havia até a história de o Nuno (colaborador musical do Diabo, sob pseudónimo) e o Rúben, também com outro nome, terem mantido uma correspondência, até que um belo dia se deram a conhecer. Por lá passou muita gente: Amália, Maria Barroso, Manuela Eanes, Júlio Pomar, Adriano Moreira, Eusébio… E o que pouca gente sabe é como foi que o Sérgio Godinho compôs Dias Úteis. Eu gostava do Primeiro Gomo da Tangerina e de outras histórias que ele tão bem sabe cantar e liguei-lhe a participar o nome do programa e a convidá-lo para criar o tema do genérico.
– Tem filhos e netos, que lhe ensinam as novas gerações?
– Com a minha filha mais velha, que nasceu quando eu já estava lançada na RTP, e agora com o Vicente, reaprendi sobretudo o sabor das pequenas coisas. Afinal, tantas vezes as mais importantes. A propósito, saiu um livro da Arianna Huffington, Thrive, onde ela explica que andamos precisados de uma terceira medida de sucesso, para além do dinheiro e do poder, assente em quatro pilares: bem-estar, sabedoria, wonder, que traduzo livremente por “assombro”, e dádiva. Talvez o maior ensinamento das novas gerações seja que quase tudo é precário ou efémero e que há que contar com isso. E o que nós lhes podemos pedir é que não desistam de lutar por aqueles quatro pilares e pelos sonhos.
– A política nunca a reptou?
– A política nunca me seduziu. A cidadania e a responsabilidade social, sim. E muito.
– E Portugal, chegará a bom porto?
– Não sei, mas quero acreditar que sim. E talvez um dos remédios (como exemplo e fonte de alegria) passe por deixarmos de cultivar o Portugal dos Pequeninos, o “contentismo” de que já o Pessoa falava, o “chico-espertismo” e o “desenrasca” e inspirarmo-nos nesse prodígio de inteligência, esforço, sacrifício e gratidão que é o Cristiano Ronaldo.
Margarida Mercês de Mello: “Ou evoluímos ou estamos perdidos”
A escritora Rita Ferro conversa com a apresentadora, locutora e entrevistadora. Uma cara e uma voz que os portugueses associam à televisão desde sempre.