Alexandra e António Maçanita recebem-nos de braços abertos na sua herdade, em Évora, região para onde se mudaram em fevereiro de 2020, uns dias antes da pandemia se instalar. Juntos há 15 anos, nove dos quais casados, e pais de Alice, de sete anos, Victoria, de cinco, e António, de um, o enólogo, de 43 anos, e a gestora de eventos e enoturismo, de 42, garantem que não se arrependeram de ter trocado a cidade pelo campo, até porque as responsabilidades profissionais os impediam muitas vezes de tirar partido das ofertas culturais de Lisboa, onde viveram até então. “Somos uma empresa que nasceu com uma mão à frente e outra atrás, com 30 mil euros emprestados pela família. Hoje, com os vários projetos, no Alentejo, nos Açores e no Douro, estamos com 5,4 milhões de euros de faturação nas várias adegas”, começa por explicar António Maçanita, que, não tendo tradição familiar no mundo dos vinhos, acabou por conseguir construir um projeto de sucesso do qual, naturalmente, se orgulha. Foi no exterior do recém-reabilitado Paço do Morgado de Oliveira, que muito em breve passará a ser morada de família, que conversámos com o casal.
– Há uns anos, em entrevista à CARAS, perguntávamos como imaginavam a vossa vida num futuro próximo. Responderam-nos “juntos e com muitos filhos”. Não andam longe…
António Maçanita – É verdade. Juntos, com filhos e mais alguns projetos: a construção da adega e o desafio da recuperação do paço medieval. Eu continuo dedicado à área dos vinhos e a Alexandra, que vinha da área de organização de eventos, desenvolveu aqui projetos de hospitality, recebendo os clientes como se fosse em casa.
“A responsabilidade da nossa geração é, antes de começar a construir de novo, olhar para o que já foi feito.”
– Pelo que percebi, terão ainda outros projetos pensados para este espaço?
Alexandra Maçanita – Sim. Para já, abrimos para eventos, provas de vinhos, casamentos ou jantares de empresas, mas estamos a reconstruir casas na herdade para eventualmente, daqui a uns anos, termos um pequeno boutique hotel ligado à adega e, assim, quem nos visitar poderá prolongar a experiência à volta dos vinhos.
– Deve ser uma alegria ver os filhos crescer neste ambiente, a brincar no campo, sem medos e em contacto com a Natureza. Terão uma liberdade difícil de alcançar em grandes centros urbanos…
– De facto. Decidimos mudar-nos para aqui para estarmos mais próximos do nosso trabalho e, ao mesmo tempo, estarmos mais tempo com os meninos. Ganhámos qualidade de vida e na verdade foi uma adaptação muito rápida e fácil.
António – Os pais hoje enfrentam esse desafio. São ambos ativos, trabalham muito e têm o tempo limitado. Mudar para aqui permite-nos trabalhar ainda mais e estarmos ainda mais com os nossos filhos. Permite sair cedo e ainda voltar a tempo para o pequeno-almoço em família, ou levá-los connosco para as vinhas. Aqui podemos receber clientes e amigos e, ao mesmo tempo, estar com a família. Não temos de fazer opções. Muitas vezes perguntam-me o que é que perdi na cidade. A verdade é que eu não conseguia aproveitar a cidade sem culpa. Não estávamos a conseguir sequer arranjar tempo para ir jantar fora.
– Não há, portanto, arrependimentos?
– Não, de todo. Tem sido uma grande aventura. Em 22 de dezembro de 2016 ganhámos coragem e adquirimos este paço, que foi fundado em 1306 e esteve na mesma família durante mais de 700 anos. Na altura disseram-nos que pouco restava do edifício medieval, mas nós descascámos tudo, pusemos as portas medievais à mostra, contratámos cinco historiadores de áreas diferentes, arqueologia, arquitetura, território, genealogia e paisagismo, para nos ajudarem.
“Não nos arrependemos nada de ter deixado a cidade. Aqui recebemos clientes e estamos em família. Não temos de optar.” (António)
– O que vai muito para além da área do enoturismo. Houve interesse em manter o património.
– É o mesmo que fazemos em tudo o que tocamos: reabilitação de património. Todos os nossos vinhos são de castas antigas, com métodos de produção antigos. São vinhas velhas com castas perdidas e o que fazemos é parar, ouvir os mais antigos e explorar.
Alexandra – As primeiras pessoas que nos visitaram nos primeiros dois anos diziam-nos que éramos completamente malucos. Hoje já dizem que tivemos muita sorte em encontrar este sítio.
António – Felizmente, correu superbem. Um edifício simboliza um momento da história e, para nós, este espaço simboliza também uma transformação, essa fase em que começámos com uma mão à frente e outra atrás a tentar encontrar vinhas especiais, a desenvolver o nosso negócio. E durante este tempo, de 2004 a 2017, eu não vi um terreno, vi centenas de terrenos.
– O que lhe deu mais certezas na hora de investir?
– Sabíamos o que queríamos mesmo, um projeto que simbolizasse o que queríamos fazer.
– E que era…?
– A responsabilidade da nossa geração é, antes de começar a construir de novo, olhar para o que já foi feito. Antes de fazer mais uma obra faraónica, antes de fazer mais um vinho estapafúrdio, é olhar para trás e ver o que é que já perdemos e devemos reabilitar, entender, recuperar. Enfrentamos agora grandes desafios, como o aquecimento global e a escassez de água, e as soluções podem passar pela forma antiga de fazer, olhar para as castas antigas ou para as construções de casas antigas, com pés-direitos grandes, que permitem que o calor suba e a casa se mantenha fresca, por exemplo. Depois, é deixar legado. O vinho é uma construção que não é de uma geração e nós somos produtores de primeira geração.
– Não há uma herança pesada por detrás…
– Certo, temos uma grande flexibilidade, abertura e liberdade. A próxima geração terá o desafio de pegar nela e avançar de uma forma diferente.
– São necessárias várias décadas de produção para se conseguir que uma marca seja reconhecida?
– Como dizia a baronesa de Rothschild, o negócio dos vinhos é fácil, só custam os primeiros 150 anos. [Risos.]
– Que não vos falte energia para deixar legado aos vossos filhos. O objetivo da Fita Preta parece não ser alcançar uma grande produção, mas sim conseguir fazer um produto de exceção…
– Sim, o nosso foco tem sido fazer bem.
Alexandra – Fazer com qualidade, sem atalhos.
António – Queremos fazer grandes vinhos. Fazer terroir, que pretende simbolizar o sentido de sítio, de solos, a exposição, a cultura, as castas, o local. Queremos conseguir meter dentro de uma garrafa esse território. Um grande vinho é um vinho que dura. E nós queremos construir vinhos que durem.
– Que durem quanto tempo?
– 20, 30 ou mais anos. Vinhos que valorizem com o tempo, que melhorem em qualidade ao longo dos anos. E para isso há uma quantidade de detalhes a que temos de dar atenção. As nossas vinhas no Alentejo, por exemplo, são em sequeiro, para obrigar as raízes a irem em profundidade…
– Não são regadas propositadamente?
– Sim, dessa forma as uvas não vão só buscar o topo dos solos, vêm com a mineralidade do solo mais profundo. E vindimamos à noite, à mão, com fermentações espontâneas, e só aqui no Alentejo trabalhamos com 23 castas diferentes. A arte final é conseguir pegar nestas peças todas e criar essa complexidade e intemporalidade.
– Consegue abraçar todos esses projetos e ainda ter espaço para se dedicar à família?
– Acho que sim. Conto com uma equipa de 100 pessoas, são muitos braços a ajudar, alguns com posições estratégicas, como a Sandra Sárria, que é nossa sócia e uma força da natureza.
– Tem um legado que o deixa orgulhoso?
– Sim, claro que sim. Temos 71 vinhos diferentes de 50 e tal castas diferentes, em quatro regiões distintas. Há um conhecimento íntimo de cada parcela, de cada vinha, de cada projeto.
– Acredita que os seus filhos um dia irão valorizar esse legado?
– Eu diria que sim. Cada vinha que planto penso neles e no que vão achar dela daqui a 30 anos. Não o faço por ser moda ou tendência. É uma decisão que queremos que seja bem tomada, para que perdure no tempo. A prova do tempo vai ser feita pela geração seguinte.
Outros projetos
Além da sede Fita Preta, em Évora, António Maçanita tem desenvolvido diversos projetos vínicos um pouco por todo o país. No Douro tem o projeto Maçanita Vinhos em sociedade com a irmã, Joana Maçanita, também enóloga, que inclui enoturismo e onde os clientes podem usufruir da vista privilegiada para o rio Douro. Nos Açores é sócio da Azores Wine Company, “uma região vinícola que não existia no mapa, que se tinha perdido nos livros, e que passou de 215 hectares para mil com este projeto”, sublinha o enólogo.