
Há 20 anos, Cleia Almeida assistiu em Londres à peça Uma Vida no Teatro, de David Mamet. O texto do dramaturgo apaixonou-a, mas a interpretação que tinha sido feita, cómica, quase a ridicularizar um ator em fim de carreira e outro a iniciar a dele, foi algo que a chocou. Havia muita gente a rir-se e a atriz, hoje com 41 anos, só pensava no lado dramático que aquelas palavras carregavam. Sonhou poder encená-la um dia e o que parecia apenas um desejo transformou-se em realidade, estando a sua versão em cena no Teatro Aberto, em Lisboa.
Mãe de Mafalda, de nove anos, e Helena, de cinco, do casamento entretanto terminado com Gonçalo Maria Lebre, Cleia está a tentar ensinar-lhes a importância de respeitar o valor dos mais velhos.
– Esta peça foi uma escolha sua?
Cleia Almeida – Sim, fazer esta peça era uma antiga vontade minha. Já tinha mandado traduzir o original e depois, no decorrer da minha relação com o João Lourenço [diretor do Teatro Aberto] e num ato irrefletido, como a maioria dos meus atos na vida, disse-lhe que gostava de encenar uma coisa. Foi mesmo assim. Isto depois de a Sara Matos, com quem estava a fazer O Filho, me instigar. Ela tem essa coisa de se atirar para a frente sem pensar duas vezes e ajudou a que eu também o fizesse. Talvez sem este empurrão não tivesse tido coragem.
– Porquê, se tinha essa ideia há tanto tempo?
– Porque nunca pensei em mim como outra coisa que não seja ser atriz. É o que sempre fiz e quero continuar a fazer, portanto, este arranque estava complicado. Por isso demorou 20 anos desde o momento em que vi esta peça.
– Para quem não se via como encenadora, está a gostar de o ser?
– Está a ser encantador. É a primeira peça que enceno e não sei se não será a última, porque sinto-me num lugar que ainda não é meu. Tenho pruridos, muita insegurança, penso como é que encenadores que estão há tanto tempo nisto verão o meu trabalho. Como atriz, não tenho esta insegurança. Já não quero saber. Claro que considero e oiço as opiniões das minhas pessoas, mas sei o que quero fazer e como quero fazer. Mas, na verdade, o pior que pode acontecer é dizerem-me que não sou grande coisa como encenadora. De qualquer forma, a experiência far-me-á sempre crescer.
“A minha filha Mafalda não compreendia o meu entusiasmo pelo 25 de Abril, mesmo que lhe dissesse que o avô esteve preso antes disso.”

– É uma peça ao mesmo tempo bonita e dura sobre dois atores de gerações diferentes. Vê-se retratada nela?
– Sim. Foi, aliás, isso que me fez ter vontade de a encenar. Gostava de explicar às gerações futuras o respeito e a empatia que devemos ter para com quem tem mais experiência e idade. Quando me apercebi de que está a ser difícil explicar às minhas filhas a importância do 25 de Abril, percebi ainda melhor como é indispensável o respeito pelo passado, pelo que os outros viveram para nós estarmos aqui. A minha filha Mafalda não compreendia o meu entusiasmo pelo 25 de Abril, mesmo que lhe dissesse que o avô esteve preso antes disso.
– Ou seja, a passagem dessa mensagem de respeito pelo passado e pelo outro começa em casa.
– Sem dúvida nenhuma! É o nosso dever como pais. Neste trabalho falo do respeito que devemos ter para com as gerações mais velhas e, de repente, acontecem as eleições legislativas e dá-se uma catástrofe, considero eu. Ainda mais alento me dá para lutar por aquilo em que acredito e a mensagem começa nas minhas filhas.
“A partir dos 40, temos uma segurança ainda maior para dizermos o que pensamos.”
– É sempre assim tão frontal?
– Sim. Para mim, a frontalidade é muito importante e a idade também não ajuda a ser de outra forma. A partir dos 40, temos uma segurança ainda maior para dizermos o que pensamos. É ótimo! Quanto mais velha fico, melhor me sabe a vida. E não há que ter receio de sermos o que somos.
– Revelou que, depois das duas vezes em que foi mãe, ficou um ano sem trabalhar, porque não a convidavam.
– É verdade e foi horrível. Achei que tinha acabado a minha carreira ali, principalmente na primeira filha. Na verdade, depois de a Mafalda nascer comecei a preparar um filme do João Canijo, mas trabalhar com ele é como ir à casa de férias, sentia que o resto estava fechado. Senti muito que uma mulher depois de ter um filho parece posta de lado profissionalmente.
– A vida de um ator é sempre um recomeçar constante?
– É, mas gosto disso, do recomeçar do zero. Por mim, nesta peça nem tinha o meu nome no cartaz ou ia para outro país com a peça só para sentir se a Cleia Almeida a encenar faria alguma diferença. Não queria que as pessoas fossem influenciadas pelo meu trabalho como atriz, pois posso ser boa atriz mas péssima encenadora e quero que tenham essa frontalidade para comigo. Desconfio sempre quando toda a gente gosta de uma coisa.
“Devia ser uma mãe mais disciplinadora, mas elas são miúdas muito alegres, não gosto de lhes ‘cortar as vazas’.”

– É uma mãe disciplinadora, como quando encena, ou mais branda?
– Não sou, e esse é o problema. Devia ser uma mãe mais disciplinadora e com mais regras, mas elas são duas miúdas muito alegres, não gosto de lhes “cortar as vazas”, porque a mim também ninguém mas cortou. Gosto que as minhas filhas sonhem, digam e façam disparates. Vamos ver o que sai. Acho que vão sair duas pessoas boas.
– O nível de exigência é muito maior quando se tem filhos, pois passa a haver mais solicitações. Como é que se organiza, até porque atualmente está sozinha com as suas filhas?
– Quando as miúdas eram pequeninas, ficava com o coração apertado se não conseguia estar com elas, mas agora já não. Estar divorciada é a parte boa, no sentido em que, quando estão comigo, tento estar inteiramente com elas, e com o pai é igual. Estou sempre a pensar como posso compensar o tempo em que não estive presente. Vamos ao teatro, ao cinema, ao parque, tudo num fim de semana, pois no anterior estive a trabalhar loucamente. Mas o que os filhos dos atores têm de bom é que há momentos grandes sem trabalhar, em que estamos só para eles. Na verdade, elas habituaram-se, desde sempre, a ter a mãe muito presente e também tenho ajudas enormes. De outra forma não poderia trabalhar.
– Apesar de ter a família longe…
– A minha família está toda em Coimbra, mas tenho uma empregada, a Isabel, que é um amor e que está comigo há anos. Deixa-me completamente descansada.