Catarina Furtado, a Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, encontra-se em Nova Iorque a participar nas iniciativas da Cimeira do Milénio. A apresentadora foi convidada pelo Secretário-geral das Nações Unidas,
Ban-Ki-Moon, para estar presente na sede das Nações Unidas e fazer uma intervenção por ocasião das celebrações do Dia Internacional da Paz.
Catarina discursou para uma assembleia de 500 jovens e líderes mundiais sobre
"Jovens, Paz e Desenvolvimento no contexto do ODM". A embaixadora ficará em Nova Iorque até dia 23 de setembro, onde terá um almoço com o Secretário-geral e reunirá com vários responsáveis das Nações Unidas. A visita de Catarina Furtado culmina com a Gala de Encerramento da Cimeira.

Abaixo, leia o discurso de Catarina Furtado na íntegra:
"Estamos em contagem decrescente… a dois terços do tempo que separa a assinatura dos compromissos que substanciam os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio feita no ano 2000 e o prazo dado para o seu cumprimento, o ano 2015.
Tenho, no terreno, os mesmos anos de idade que os ODM e por isso entendo bem porque é preciso estabelecer ou impor prazos para que as coisas chocantes tenham um fim, ou uma redução à vista.
Gostava muito de vos poder contar tudo, o que tenho visto, ouvido e sentido ao longo destes dez anos a trabalhar enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População. Mas não consigo porque há realidades que calam as palavras. Preciso no entanto que entendam o quão importantes são, cada um de vocês, nesta Aldeia Global em que vivemos, uns mais privilegiados que outros, mas todos fundamentais para ajudar a contrariar o bater desigual e injusto do Mundo.
Ao visitar, por diversas vezes Moçambique, Guiné-Bissau , Timor Leste, Indonésia, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde tenho conhecido tantos e tão especiais jovens, com a vossa idade que não têm mesmo nada, muitos, apenas sentem fome e uma vontade indescritível de não deixar morrer as suas pessoas, e os seus países. Não sei de onde lhes chega a força mas dou por mim a pensar que tem de chegar obrigatoriamente de nós. Nós podemos ajudar a que compromissos se assinem e se ponham em prática.
Podemos falar tão alto que a voz se transforme num ultimato para que a humanidade proteja aqueles que são sempre os mais discriminados: as mulheres, crianças e jovens dos países em desenvolvimento, sobretudo os que vivem em situação de conflito ou pós-conflito como na Guiné-Bissau, onde tenho acompanhado o trabalho do UNFPA e da Cooperação Portuguesa sobre o ODM 5: Melhorar a saúde materna, reduzindo a mortalidade materna e neonatal em 75% e promover o acesso a cuidados de saúde reprodutiva.
O que tenho visto não faz sentido nenhum: raparigas da vossa idade já casadas há muito tempo com homens de mais de 60 anos só porque sim; meninas da vossa idade já com duas gravidezes, umas forçadas, outras porque nunca ninguém lhes explicou nada… são raparigas, não têm esse direito, o direito a saber, a estar informadas, a decidir ; meninas, raparigas, mães que perdem automaticamente a oportunidade de irem à escola assim que engravidam e dão de caras com um portão de grades a fechar-se à frente do seu futuro; crianças, meninas e raparigas violentadas para sempre depois de serem sujeitas a uma mutilação genital feminina só porque a tradição assim o impõe, sendo que a tradição e os valores culturais podem salvar vidas se forem bem orientados; mulheres que se habituaram, numa dor silenciosa, a contar o número de filhos mortos e por isso continuam a engravidar em condições miseráveis sem acesso à contraceção ou ao planeamento familiar cuja existência desconhecem; mulheres mães a quem nunca ninguém fez uma consulta de saúde sexual e reprodutiva e que por isso, contaminadas pelo vírus da Sida, tantas vezes trazido pelos maridos, transmitem aos seus bebés, quando poderia ser tão facilmente evitável através dos testes e de medicamentos; meninas e mulheres que morrem a dar à luz todos dias quando, num país como o meu e como o vosso, isso é hoje impensável e faria abertura de telejornal para além de um inquérito parlamentar.
São aos milhares e eu vi muitas fecharem os olhos ao pé de mim ou porque não havia uma ambulância, ou porque não havia eletricidade ou porque chegaram tarde ao hospital já que a maior parte das vezes é o marido ou a família quem decide.
Vi, e não esqueço a menina de 12 anos, com corpo de oito, que às costas trazia o irmão de meses e enquanto o embalava tentando calar o seu choro, escondia as lágrimas pesadas por ver ao fundo, numa espécie de enfermaria, numa espécie de cama com colchões rotos e muito sujos, a irmã mais nova de cinco anos a morrer, devagarinho, nos braços de um pai impotente e de uma mãe descontrolada de uma dor insuportável. A menina morreu com paludismo porque chegou tarde ao hospital. Evitável.
Vi e não esqueço também a Mia, uma jovem Indonésia de Banda Ache que me levou ao buraco onde antes era uma casa de família . A sua, com os seus. Hoje começa tudo de novo, casando com um outro jovem a quem também o tsunami roubou tudo e todos. Agarrados à vida que têm as fotografias que resistiram, arregaçam a força da juventude e reconstroem uma casa, um país.
Shavi é um moçambicano com sorriso rasgado, dezoito anos que parecem trinta, tanta é a sabedoria das ruas, que me disse para confiar que ele e os seus amigos da ONG feita de e para os jovens iriam salvar o seu país do implacável vírus da Sida. Só precisava de uns computadores e de umas impressoras para se ligar ao mundo e o resto era com eles. Foi há 10 anos. Voltei a falar com o Shavi que não salvou o seu país mas que tem feito um trabalho insubstituível de prevenção, informação, e motivação dos jovens. Um orgulho.
E lá no Norte de Moçambique a enfermeira Laura trava uma batalha diária com as suas limitações físicas, ( a guerra roubou-lhe um pé) com uma muleta improvisada, há anos que as pedras das ruas de Tete não são para ela um problema. As milhares de crianças e jovens órfãs da sida que lhe aparecem à porta, que encontra à beira do rio, ou encostadas a lixeiras é que lhe tiram o sono mas não a capacidade de as salvar com o pouco que tem. Há poucos meses confidenciou-me, inchada de vaidade, que já conta pelos dedos das duas mãos os bebés ratados pelos bichos e que hoje se transformaram em jovens doutores. São os tais jovens que se empoleiram pela vida acima por saberem bem o valor que ela tem.
Nestes outros países de que vos falo, mulheres, homens, rapazes, raparigas e bebés morrem porque lá o tempo e a urgência é outro…faltam tantas coisas simples e essenciais que aqui nem sequer damos por elas. E nos países em que existem conflitos armados, falta o diálogo para logo depois passar a faltar tudo. Cresce um mundo absolutamente cruel principalmente para os mais jovens. Elas são violadas, mutiladas, ficam seropositivas, com fistula obstétrica, banidas da escola e das famílias. E todos vêm os que amam fechar os olhos à sua frente. Ficam sem chão, sem tecto, ficam sem ar.
É urgente dar urgência ao discurso dos jovens de hoje. Dos jovens que sofrem muito e dos que não querem ver os outros sofrer mais. A comunicação intergeracional é inteligente, logo eficaz. O vosso potencial de Desenvolvimento, Saúde e Paz não tem limites e pode inverter o ciclo da desigualdade e do conflito. Acreditar é preciso! E vocês são muitos, são a maioria! Nunca o mundo teve uma tão grande geração de jovens…aproveitem a oportunidade, façam hoje a mudança porque não se podem adiar mais os Direitos Humanos.
Quando eu era adolescente sempre ouvi o meu pai jornalista, contar-me histórias humanas que vinham agarradas aos pedaços de artesanato que ele me trazia destes países. Quando me contava que eram crianças trabalhadoras, crianças que sobreviviam fingindo serem crescidos, oprimindo vontades e sonhos, eu pensava " e se fosse eu a ter nascido neste país?".
Este é dos exercícios mais difíceis de se fazerem. Custa muito colocar-mo-nos nos lugares dos que nada têm. Normalmente não nos damos ao trabalho, se calhar até ao dia em que esbarramos com a dor dos outros e ficamos contaminados pela urgência de fazer qualquer coisa que ajude a mudar a realidade desumana, uma realidade que lhes preenche os dias. Eu sinto-me contaminada por este vírus bom que me empurra para estes países; que me faz em Portugal ir a tantas escolas e universidades falar com jovens como vocês para os contagiar; que me obriga a falar em voz muito alta para que a imprensa e o público que assiste ao meu trabalho de apresentadora e atriz fique tocado com as mensagens importantes; que puxa pela minha imaginação de forma a que invente campanhas de donativos e campanhas informativas e deadvocacy mobilizando a sociedade civil, mas também os governos e os parlamentos; que me oferece uma força extra que me permite ter capacidade para estudar os relatórios, reunir com governantes com parlamentares e muito simplesmente dizer o que vejo e o que penso daquilo que vejo.
A indignação pode fazer a mudança e de certeza que vocês, alguma vez na vida já se sentiramindignados…usem essa indignação, sejam construtores da mudança de hoje que terá efeito amanhã.
A primeira vez que me lembro de sentir esse desconforto que traz alguma raiva dentro foi quando tinha 12 anos e o meu pai tinha ido fazer uma reportagem para a Nicarágua onde acabou por sofrer um atentado bombista. Ficou com o braço todo queimado. Ao seu lado morreram outros jornalistas. Fiquei sem ele durante longos e difíceis dias e estava zangada porque ninguém me explicava a razão de, no Mundo, se andarem a mandar bombas para cima um dos outros desvalorizando a vida. Falei com a minha professora de português e escrevi cartas ao meu pai para tentar colmatar a minha indignação. Percebi logo aí que existem valores, conceitos, crenças ou causas que fazem tanto sentido para uns e tão pouco para outros.
E para mim até hoje passou a fazer sentido, na medida das minhas possibilidades, promover a paz, ter uma intervenção útil enquanto profissional, mulher e mãe que ajude a pôr fim à guerra, à violência, à discriminação mas também apaziguar a dor sonora e a dor silenciosa e clamar pelos Direitos Fundamentais.
Assim, naquela altura enquanto adolescente não foi preciso dizerem-me que era poderosa. Foi preciso sentir que era de facto poderosa. Mas eu estava num país que me dava oportunidades de estudar, ter saúde e exercer os meus direitos. Comecei a trabalhar com outros jovens em associações de estudantes e a olhar para lá do nosso gigante umbigo. Imediatamente senti o retorno da entrega: uma maior segurança para encarar o mundo porque me obrigou a conhecê-lo melhor; uma maior capacidade para aceitar os outros e um espírito inquieto de sentido de cidadania. Até hoje.
Hoje com mais responsabilidades, claro, porque sou voz de um gigante número de pessoas que trabalha incansavelmente, porque cada pessoa conta. O Fundo das Nações Unidas para a População tem-me permitido estudar dossiers que chocam pelos números gritantes com muitos algarismos: as crianças e jovens que morrem a cada segundo que passa com fome, as mulheres que morrem a cada minuto que passa com complicações derivadas da gravidez ou parto…as vidas e as economias que a prevenção poderia salvar.
Quando vou para os terrenos fazer documentários filmados sobre a realidade destes países tudo se torna mais claro e mais duro. As estatísticas são afinal casos humanos com nome, idade e sexo. E logo faz toda a diferença. Passam a fazer parte da minha vida. Passo a ter a saudável obrigação de denunciar por um lado e de angariar não só mais financiamentos mas sobretudo mais parceiros cúmplices nesta caminhada. São estas redes ilimitadas que podem ser essenciais. E confiem em mim, as vossas podem ser invencíveis e não falo de internet e redes sociais!
A vossa dedicação, a vossa capacidade de entrega e de indignação pode mesmo fazer a diferença. Como eu vi fazer nestes locais onde nunca quero deixar de voltar, através da iniciativa e do envolvimento de rapazes e raparigas que não irei nunca esquecer.
O que nos comove, tanto pode ser uma dor forte como uma grande conquista: conquistem e reclamem o vosso direito a um mundo mais justo, solidário, responsável e com promessas cumpridas".